Karl
Heinz Arenz
Diogo
Costa Silva
3. A
consolidação sob João Felipe Bettendorff
O
padre João Felipe Bettendorff pode ser associado a uma das fases mais difíceis
do “século jesuíta” na Amazônia Portuguesa. De fato, a região viveu entre 1661
a 1693 uma grande instabilidade econômica e incerteza jurídica. Além do padre
luxemburguês, destacaram-se neste período outros jesuítas não-portugueses,
sobretudo os italianos João Maria Gorzoni e Pedro Luís Consalvi. Quanto à
trajetória de Bettendorff, ele nasceu em 1625, em Lintgen, no então Ducado de
Luxemburgo, e entrou – após os estudos das humanidades, da filosofia e do
direito romano – no noviciado da Companhia de Jesus na Província Galo-Belga96. Logo após a sua ordenação sacerdotal, em
1659, ele viajou, via Portugal, para a Missão do Maranhão a qual ele tinha sido
destinado. No dia 20 de janeiro de 1661, ele aportou, junto com seu compatriota
Gaspar Misch, em São Luís. Logo em seguida, os dois foram enviados pelo padre
Vieira ao vale do Amazonas. Bettendorff se instalou como primeiro missionário
residente na confluência do Tapajós com o Amazonas (hoje Santarém); Misch ficou
nas cercanias do fortim de Gurupá97.
A
historiografia conhece Bettendorff principalmente como autor da Crônica dos
Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Sua importância como
cronista ofusca o fato de que o padre luxemburguês deteve, entre 1662 e 1693,
quase ininterruptamente, todos os cargos-chave da Missão: reitor de colégio,
superior e procurador. Neste contexto, a expulsão repentina de Vieira, em 1661,
e a rápida ascensão de Bettendorff no seio do grupo dos missionários que
conseguiram escapar do exílio ou voltar logo, levantam a questão quanto à
relação entre ambos, sobretudo no que se refere à continuação do legado
administrativo-jurídico de Vieira. Fernando Amado Aymoré e José Vaz de Carvalho
tendem a ver em Bettendorff um “traidor” dos ideais de seu predecessor; Aymoré
o denomina até “anti-Vieira”.98 No mesmo
sentido, Carlos de Araújo Moreira Neto, Eduardo Hoornaert e Hugo Fragoso opõem
Vieira como articulador de uma suposta “fase profética” a Bettendorff como
mentor de um período de caráter “empresarial”.99
Já Maria Liberman qualifica o padre luxemburguês como “fiel continuador de
Vieira”.100 Sem polemizar estas
posições categóricas, tem que se levar em conta que a conjuntura
sócio-econômica dos anos 1660 e 1670 não permitiu ao novo superior uma simples
continuação da política monopolista e expansionista do padre Antônio Vieira.
Bettendorff
chegou à Missão alguns meses antes do levante de 1661. Devido a sua origem
centroeuropéia e seu longo percurso formativo (1635-1659), o padre luxemburguês
demonstrou ter uma concepção diferente quanto ao projeto da Missão. Primeiro,
ele favoreceu claramente uma aproximação com os colonos pelo viés das
atividades pastorais e do acompanhamento espiritual, promovendo confrarias populares
e agraciando benfeitores e devotos com o título de “irmão da Companhia”.
Segundo, ele deu às questões indigenistas uma dimensão jurídico-técnica, pois
sua argumentação não endossou mais o pressuposto vieiriano de cunho
personalista (o índio tutelado), mas antes frisou o aspecto institucional (o aldeamento
autônomo). Terceiro, diante das tensões no interior da própria Missão –
dissensões entre os missionários de origens e mentalidades diferentes e falta
de apoio material por parte das Províncias de Portugal e do Brasil –
Bettendorff buscou uniformizar a vida comunitária e o discurso catequético dos missionários
e favoreceu os contatos com a Província lusa101.
Assim, o proceder pragmático do padre luxemburguês contribuiu
significativamente à consolidação da Missão do Maranhão entre a expulsão de Vieira,
em 1661, e a divisão dos aldeamentos entre as ordens religiosas atuantes na
Amazônia, em 1693.
3.1. Os anos de
incerteza (1661-1684)
Em
1662, Bettendorff foi nomeado superior provisório em Belém, mas já no ano
seguinte ele recebeu a incumbência de gerenciar a casa central da Missão em São
Luís. Nas duas casas – que se tornariam colégios em 1670 – o padre luxemburguês
reorganizou a base econômica, reativando fazendas e erguendo oficinas, e
promoveu a atuação pastoral entre os moradores por meio de pregações e confissões
regulares102. Mesmo assim,
Bettendorff apresentou, em 1665, no seu primeiro relatório ao Superior Geral, um
quadro bastante negativo da Missão103.
Trata-se de um primeiro balanço de sua presença quadrienal na Amazônia. Ele
lamenta, sobretudo, o agravamento da exploração infligida pelos moradores – com
a conivência do governador Rui Vaz de Siqueira – aos índios desde o fim do
monopólio jesuítico (1663) e a crescente mortalidade em razão das epidemias,
dos trabalhos pesados e da falta de alimentos. Os abusos denunciados por
Bettendorff foram confirmados pelos padres Pedro Luís Consalvi e João Maria
Gorzoni. O primeiro fala, em 1663, de tropas ilegais que partiram abertamente
para capturar índios com o simples intuito de farli schiavi dei bianchi (“fazê-los
escravos dos brancos”). O segundo aponta, em 1665, os excessos de trabalho aos
quais os moradores forçaram os índios sem pagar a remuneração devida104.
A
missiva de Bettendorff esconde tampouco os “choques culturais” que ele
experimentou frente ao universo ameríndio. Assim, ele chama os índios de “pouco
interessados na doutrina e nas coisas sagradas, negligentes com respeito a Deus
e à salvação, estúpidos, imbecis, brutos e quase que com uma tendência inata
para a inércia e a imoralidade105”. O
luxemburguês exprime a sua frustração por meio do lugar-comum da suposta
obstinação ou indiferença dos indígenas frente à catequização que, aliás,
perpassa as cartas e crônicas dos séculos XVII e XVIII106. Outra preocupação que Bettendorff articula,
refere-se à infra-estrutura precária da Missão e à falta de zelo pastoral e de
formação intelectual dos próprios missionários. Segundo ele, igrejas, capelas e
residências no interior se encontravam num estado deplorável, as confrarias nas
cidades revelavam pouco fervor e um curso complementar de teologia moral para
os padres mais jovens deixava muito a desejar107.
Bettendorff repete este quadro sinistro em outras cartas à cúria generalícia –
geralmente com o intuito de conseguir o envio de mais missionários e subsídios108.
A
penúria da Missão estava ligada à crise econômica geral, que afligiu todo o
mundo colonial na segunda metade do século XVII. Gravemente atingido, o Império
Português tentou dinamizar a rede comercial no Atlântico109. No intento de integrar melhor a colônia
amazônica, o príncipe-regente D. Pedro II enviou, no dia 19 de setembro de
1676, uma carta régia às câmaras de São Luís e Belém. Esta missiva instaurou o
“estanco do ferro”, isto é, a importação e comercialização de ferro, aço e
ferramentas sob o controle da fazenda real. Ao mesmo tempo, ela definiu a
taxação das drogas do sertão destinadas à exportação110. O príncipe incentivou, neste contexto, a
coleta e o cultivo da baunilha e do cacau, dois produtos muito apreciados na
Europa naquele momento111.
Contudo,
a política de integração da Coroa não foi somente de cunho econômico. Ela
previu também a ereção de uma diocese. O motivo principal para tal propósito
foi mais político do que pastoral. De fato, um bispo estreitamente ligado à
Coroa tenderia a apoiar incondicionalmente as iniciativas da metrópole e
constituiria um contrapeso frente à expressiva influência dos religiosos, razão
do constante descontentamento dos colonos. O prelado seria, por isso, incluído
no procedimento da repartição anual da mão-de-obra indígena, aumentando a
influência da Coroa nesta prática de suma relevância econômica112. A diocese de São Luís foi fundada em 1677,
sendo seu primeiro bispo D. Gregório dos Anjos113.
O novo prelado exigiu logo que os jesuítas lhe obedecessem enquanto autoridade
eclesiástica máxima da colônia, recusando-se a conferir a certos padres a
autorização para ouvirem confissões, mesmo nas aldeias sob os cuidados
pastorais da Companhia de Jesus114.
Numa época que viu o sacramento da penitência como um meio essencial para a
evangelização, esta medida equivalia a uma afronta sem igual contra os
missionários. Finalmente, encontrou-se um compromisso graças a uma mediação do
padre Vieira: os jesuítas cederiam ao bispo no que diz respeito às rubricas
canônicas e litúrgicas, mas não permitiriam sua interferência na administração
espiritual das missões por se tratar de um direito garantido pelo rei115.
Na
mesma época, a metrópole deu continuidade às reformas. Duas leis, inspiradas
pelo padre Vieira e promulgadas em 1º de abril de 1680, ampliaram as condições
de integração da colônia amazônica à rede comercial do Atlântico português. A
primeira anunciou três medidas importantes: a introdução de “negros da Costa de
Guiné” para “a cultura de searas [plantações agrícolas] e novas drogas
[produtos florestais]”; a continuação das repartições anuais dos índios
aldeados; enfim, o monopólio jesuítico sobre os descimentos de índios do
“sertão” e, também, sobre a fundação de novos aldeamentos116. A segunda lei declarou os índios como
doravante livres de toda forma de cativeiro e servidão. Porém, a nova liberdade
referiu-se, na prática, à escolha dos serviços, sendo que o confinamento em
“aldeas de Indios livres e catholicos” continuou sendo obrigatório117.
Um padre jesuíta
no Brasil. Chapéu e bastão apontam para a itinerância dos missionários. Pintura
do século XVIII.
Todas
estas medidas visaram formar uma mão-de-obra dócil e adaptada às novas
iniciativas econômicas. O nexo com as provisões anteriores sobre a importação
de ferro, a taxação das drogas do sertão e a flexibilização da repartição dos
índios é evidente. Além disso, a introdução de escravos africanos faria com que
os aldeamentos fossem – conforme o desejo de Vieira – menos visados como
“reservatórios” de mão-de-obra. A fundação da Companhia Geral do Comércio do
Estado do Maranhão e Grão-Pará, em 12 de setembro de 1682, completou as
medidas promulgadas anteriormente; haja vista que este empreendimento foi
projetado para viabilizar o intercâmbio transatlântico com base na importação
de escravos africanos e na exportação dos produtos florestais e agrícolas118. Para garantir os investimentos necessários
na nova companhia, as concessões comerciais foram conferidas em forma de
monopólio a mercadores lisboetas119.
Tentou-se, assim, estabelecer no Atlântico Sul – ao lado da já existente rota
Brasil- Angola – um segundo eixo de comércio rentável, ligando os dois maiores
portos da Amazônia ao entreposto de Cacheu na costa da Guiné.
Mas
este complexo “pacote sócio-econômico”, introduzido entre 1676 e 1682, ao invés
de inspirar confiança aos colonos, gerou um clima de revolta, sobretudo na
cidade de São Luís. De fato, os objetivos metropolitanos revelaram ser pouco
condizentes com a precariedade da principal cidade da colônia e com a situação
dos moradores que possuíam fazendas e engenhos de médio porte e controlavam o
modesto comércio local120. Laura de
Mello e Souza fala de “dois projetos inflexíveis” cujo afrontamento criaria uma
situação nova121. De fato, em
fevereiro de 1684, os moradores mais frustrados decidiram rebelar-se sob a liderança
dos irmãos Manuel e Tomás Beckman e Jorge Sampaio, integrantes da camada
abastada que mais sentiu os impactos da crise122.
Apesar de semelhanças com o levante de 1661, esta segunda insurreição mostrou
ser mais complexa por três razões123.
Primeiro, os colonos viram o seu acesso à mão-de-obra nativa restrito pela lei
de 1680, pois havia menos repartições. Segundo, os escravos recém-introduzidos
da África estavam fora de seu alcance devido ao preço elevado. Terceiro, sua
implicação – já mínima – no intercâmbio com a metrópole foi “sufocada” em razão
do caráter monopolista da companhia de comércio.
Na
noite do dia 23 de fevereiro, os revoltosos conseguiram ocupar a cidade. Em
frente ao colégio jesuítico, a multidão agitada exigiu que os inacianos
renunciassem à sua participação na administração dos aldeamentos e na
repartição dos índios. Os jesuítas rebateram estas reivindicações, alegando que
elas seriam contrárias à legislação em vigor cuja modificação caberia
unicamente ao rei. Mas, excitados e incapazes de analisar o caráter
multifatorial de sua situação, os moradores acabaram projetando toda responsabilidade
por suas mazelas na Companhia de Jesus. Como os inacianos não cederam, eles foram
postos em prisão domiciliar dentro do próprio colégio. No dia 19 de março, a
Junta dos Três Estados124 – órgão
executivo dos revoltosos – decretou sua expulsão sob o pretexto de terem
abusado de seus privilégios e indevidamente acumulado riquezas125. Uma semana depois, no dia 26, foi executada
a deportação126.
Juntamente
com outros missionários expulsos, Bettendorff alcançou Recife em 20 de maio de
1684. Após uma primeira deliberação com os confrades da Província do Brasil e
uma audiência com o governador pernambucano, os padres João Felipe Bettendorff
e Pedro Pedrosa foram enviados até Bahia para consultar o Superior Provincial
Alexandre Gusmão. Estando este ausente, os dois emissários conferenciaram com o
padre Vieira que, desde 1681, estava de volta ao Brasil. Ficou decidido que
Bettendorff viajaria imediatamente à metrópole para defender como procurador ad
hoc a causa da Missão. No dia 23 de outubro de 1684, o padre luxemburguês
aportou, em companhia do irmão Marcos Vieira, em Lisboa 127.
3.2. As medidas
de reorganização (1685-1693)
Apesar
das dúvidas de certos padres quanto à capacidade diplomática de seu confrade luxemburguês128, Bettendorff conseguiu logo introduzir-se na
corte. Segundo seu próprio relato, o rei D. Pedro II mostrou-se interessado e
indicou-lhe como interlocutor o secretário régio Roque Monteiro Paim, homem
favorável à restituição dos jesuítas129.
Bettendorff apresentou ao monarca um memorando de doze propostas que serviriam
de base para as negociações posteriores (1684-1686).130 O documento prevê uma revisão completa das
relações entre jesuítas, moradores e autoridades coloniais. Mas, ao invés de
pedir meramente uma volta imediata à Amazônia, reivindicou-se: a restituição da
“dupla administração” dos aldeamentos (perdida em 1663, restituída em 1680 e
novamente suprimida em 1684); a reestruturação externa e interna dos
aldeamentos (numericamente menos, mas demograficamente maiores, com uma equipe
permanente de missionários residentes e acesso limitado para militares e colonos);
um controle mais eficaz sobre expedições e repartições (para evitar abusos);
enfim, a garantia de um apoio financeiro por parte do rei (mediante envio
regular de subsídios). O objetivo principal destas propostas foi, antes de tudo,
a obtenção de condições favoráveis para um recomeço das atividades missionárias
sem ambigüidades, ou seja, um modus vivendi aceitável para todos.
Diante
da gravidade da situação, foi constituída uma junta especial para tratar da
contenda. Os seus integrantes eram conselheiros régios e altos funcionários.
Bettendorff não fez parte, mas exerceu uma influência significativa por meio de
seu contato com Roque Monteiro Paim131.
Além disso, ele contou com o apoio de confrades que atuaram na corte e gozou da
benevolência da nova rainha de origem alemã, D. Maria Sofia. Se a nomeação do
militar experiente Gomes Freire de Andrade ao cargo de governador do Maranhão,
ainda em 1684, parecia significar um primeiro sucesso para a causa jesuítica, a
aparição dos procuradores dos moradores, Tomás Beckman e Eugênio Ribeiro, foi
motivo de inquietação; mas ambos foram logo presos e desterrados132. Paradoxalmente, a chegada inesperada do
Superior da Missão Jódoco Perret significou uma ameaça maior. Homem de caráter
impulsivo, o padre suíço mostrou-se favorável à supressão da Missão e defendeu
sua posição com veemência133.
Bettendorff resolveu o incidente ao manter Perret afastado da cidade de Lisboa134.
Quando
foi decretada a restituição do colégio de São Luís, em meados de 1685, o bom
andamento dos debates parecia garantido e o fim das conferências próximo135. No entanto, várias petições da câmara de
Belém, o envio de um procurador hábil – o antigo capitão-mor do Grão-Pará
Manoel Guedes Aranha –, e a crescente influência do governador Gomes Freire de
Andrade ampliaram o escopo das negociações. A repartição tripartite anual da
mão-de-obra tornou-se o ponto mais polêmico, haja vista que o número de trabalhadores
disponíveis em certas “aldeias de repartição” era demasiado pequeno para uma
divisão eficaz e os prazos de ausência permitida não correspondiam às condições
dos serviços de regime sazonal (coleta das drogas do sertão). Os jesuítas
cederam, enfim, no que tange à repartição que passou a ser bipartite – entre os
moradores e os aldeamentos – e aos períodos de trabalho fora das missões. Em seguida,
quando foi abordada a questão da administração temporal, os moradores
insistiram na sua completa abolição, alegando que os inacianos deveriam
dedicar-se exclusivamente à evangelização. Em resposta, Bettendorff exigiu
categoricamente a restituição do poder temporal sobre os índios, afirmando que
“sem a administração temporal dos índios, a Missão não pode subsistir136”. Em face deste impasse, Gomes Freire
declarou-se favorável ao restabelecimento da “dupla administração”. A junta
acatou a posição do governador e, logo em seguida, recomendou-a ao rei 137.
Com
base neste “pacote” de compromissos, foi promulgado, em 21 de dezembro de 1686,
o Regimento das Missões. Esta masterpiece of legislation (“peça-mestra
da legislação”) – na opinião de Mathias Kiemen138
– conjuga, em linguagem jurídico-técnica, os objetivos da “salvação das almas”
dos índios com o regime de confinamento e trabalho obrigatórios. Neste sentido,
a nova lei objetiva
dar fôrma
conveniente à reduçaõ do Gentio do Estado do Maranhaõ, para o gremio da Igreja,
& a repartição, & ser o vicio [a obrigação] dos Indios, que depois de
reduzidos assistem nas aldeas, querendo de tal modo satisfazer ao bem espiritual,
& temporal de huns, & outros, que inteyramente fosse satisfeyto o
serviço de Deos, para bem de suas almas, & se encaminhasse à vida de todos
com honesto trabalho della, ...139
No
documento há quatro eixos principais que permitem subsumir o conjunto de seus
vinte e quatro parágrafos. Primeiro [§§ 1-7], os aldeamentos terão uma
expressiva autonomia, garantida mediante: a restituição da “dupla
administração”, a nomeação de dois “procuradores dos índios” e a supervisão da entrada
de não-indígenas como da saída de indígenas. Além disso, sujeitar-se-á o
casamento misto a controles para evitar a eventual escravização da parceira
ameríndia. Segundo [§§ 8-9, 22], os aldeamentos serão reagrupados em lugares
estratégicos com, respectivamente, uma população mínima de 150 casais, facilitando,
assim, as repartições e agilizando o intercâmbio demográfico e econômico entre
eles. Terceiro [§§ 10-19], os serviços dentro e fora dos aldeamentos serão
flexibilizados nestes termos: haverá um inventário anual da mão-de-obra
masculina que será, em seguida, bipartida. Os índios que forem destinados a
trabalhos fora da missão terão definidos, por uma comissão mista, os tipos de
serviço, os períodos de ausência – no Maranhão até quatro e no Pará até seis
meses conforme a sazonalidade das safras – e o valor da remuneração. Quanto aos
missionários, as residências que ficarem a trinta léguas das principais
cidades, receberão vinte e cinco índios (mais tarde, casais) para seus
serviços. Quarto [§§ 20-21, 23-24], certas necessidades dos moradores
(sobretudo, a requisição de índios como remadores para transportes de porte
maior, ou de índias como amas de leite ou ajudantes na produção de farinha de mandioca)
e dos índios recém-descidos (provisoriamente instalados em aldeamentos à parte
e, por dois anos, isentos de serviços exteriores) não serão mais negadas, mas
tratadas como casos excepcionais140.
Apesar
do conteúdo pragmático e o teor conciliatório, a aplicação do Regimento revelou
ser difícil. De fato, a persistência da falta crônica de mão-de-obra, a
crescente afirmação das outras ordens (franciscanos, mercedários, carmelitas) e
a ocupação progressiva do interior, por meio de uma malha de fortes e fortins,
marcaram a conjuntura no último quartel do século XVIII141. Diante deste quadro, um alvará readmitiu,
em 1688, a organização de tropas de resgate142.
Poucos anos depois, em 1693, a rede de aldeamentos foi dividida entre todas as
ordens presentes na colônia; haja vista que a Companhia de Jesus
não tinha padres
suficientes para garantir um atendimento pastoral e administrativo adequado143. Conforme os acordos, os jesuítas se
retiraram das missões da margem esquerda do Amazonas e das mais recentes sitas
nos rios Madeira e Negro144. É
importante assinalar que, em longo prazo, a divisão favoreceu os inacianos,
pois resultou em uma concentração eficaz de suas atividades e, também, de seus
bens na “banda sul” do rio-mar, uma área já bem integrada às dinâmicas
econômicas da colônia.
Com
a crescente expansão lusa no espaço amazônico, a Missão do Maranhão entrou em
contato direto com missionários que atuavam em áreas fronteiriças controladas
ou reclamadas por outros europeus. Assim, o padre Samuel Fritz, jesuíta
originário da Boêmia e membro da Província de Quito, desceu em 1689 o rio até
Belém para cuidar de sua saúde e denunciar os abusos cometidos pelos portugueses
nas missões dos rios Solimões e Negro. A presença deste inaciano, vindo de
regiões pretendidas pela Coroa castelhana, incomodou não somente as
autoridades, mas até seus próprios irmãos de batina. Em 1691, ele se viu
forçado a voltar rio acima145. Alguns
anos mais tarde, em 1696 e 1697, tomou-se conhecimento de que as investidas
francesas a partir de Caiena em direção ao Cabo do Norte tiveram o
acompanhamento de padres jesuítas. Dentre eles estava o padre Claude de
Lamousse que serviu de capelão e intérprete146.
Nos dois casos denota-se que, ao invés de priorizarem sua pertença comum à Companhia,
os padres tenderam a frisar sua lealdade para com a respectiva coroa.
No
que tange à implantação do Regimento das Missões no interior dos
aldeamentos, evidenciou-se a necessidade de fortalecer a coesão do grupo dos
missionários e de uniformizar os métodos pastorais. Neste sentido, Bettendorff
tratou em 1690, enquanto Superior da Missão, de reafirmar a Visita de
Vieira e de introduzir um catecismo único. Esta política objetivou evitar a
dispersão do potencial jesuítico, sobretudo no contexto da chegada sucessiva de
missionários jovens e inexperientes147.
No mesmo intuito, o padre luxemburguês tinha publicado em 1687, durante sua estadia
em Lisboa, uma reedição da famosa Arte de Grammatica da Lingua Brasílica de
Luís Figueira e um catecismo bilíngüe – nheengatu-português – de sua própria
autoria, o Compendio da doutrina christam na Lingua Portugueza, &
Brasilica148. Além disso, Bettendorff
conseguiu, em 1692, a obtenção de um aumento dos subsídios reais para os
missionários conforme as disposições do padroado149.
Estas medidas significaram um fortalecimento interior da Missão, servindo de
complemento para a consolidação exterior alcançada mediante a autonomia das
missões
(1686) e a
divisão das mesmas (1693).
Apesar
da aparente vantagem para a Companhia de Jesus, o Regimento das Missões teve
um impacto sobre a sociedade colonial inteira, pois constituiu um modus
vivendi viável que contemplou os principais interesses de todas as partes
envolvidas e concernidas. Assim, os religiosos recuperaram a “dupla administração”
e voltaram fortalecidos ao Maranhão como gerenciadores de aldeamentos doravante
autônomos. Os moradores conseguiram um acesso mais amplo à mão-de-obra
indígena, pois a bipartição e os prazos prolongados de serviço lhes forneceram
mais trabalhadores por mais tempo. As autoridades metropolitanas puderam
esperar da conciliação destes dois grupos-chave uma rápida estabilização sócio-econômica
da precária e periférica colônia amazônica. Quanto aos índios aldeados – sem
participação nenhuma nas negociações –, eles obtiveram uma relativa proteção em
razão da interdição da entrada de “brancos” e mestiços nas missões e das
disposições especiais para mulheres e grupos recém-descidos150. De fato, o espaço autônomo dos aldeamentos
permitiu, em longo prazo, que se desenvolvesse uma cultura popular de matriz
indígena na qual elementos de origem xamânico-ameríndia se justapuseram e/ou sobrepuseram
aos de proveniência ibero-barroca.
O
Regimento das Missões, com seu caráter técnico e teor isolacionista no
que tange à compreensão da autonomia, tornou-se, para além de sua supressão em
1757, uma espécie de lei orgânica da sociedade colonial da Amazônia Portuguesa.
De fato, o Diretório dos Índios151
que o substituiu, constitui basicamente uma versão “laicizada” das disposições
de 1686. Por sua vez, o Regimento não teria sido possível sem as leis vieirianas
de 1655 e 1680, que buscavam, de certa forma, salvaguardar o ideal da
“liberdade dos índios”. Mesmo não tendo sido um “fiel continuador de Vieira” –
como sugere Maria Liberman152 –, a argumentação
do padre Bettendorff, proferida durante as negociações entre 1684 e 1686, não
representa uma ruptura completa com a lógica de seu predecessor. Seja como for,
o proceder pragmático do padre luxemburguês foi decisivo para dar ao Regimento
das Missões – por sinal, a última colaboração jesuítica na legislação
indigenista – um efeito relativamente durável no processo da constituição da
sociedade regional nos séculos XVII e XVIII.
Conclusão
Os
três personagens fundadores que se seguiram, quase em linha ininterrupta, entre
1622 e 1693, à frente da Missão do Maranhão, marcaram profundamente a presença
da Companhia de Jesus como também o processo de formação da sociedade colonial
nesta região “de fronteira”. Apesar de sua situação geoestratégica entre o
centro do continente sul-americano e o espaço atlântico, a colônia portuguesa
na Amazônia, fundada em 1621, viveu muito tempo em um relativo isolamento.
Economicamente pouco rentável, em razão da predominância do extrativismo
florestal e da crise econômica do século XVII, ela atraiu um número muito
reduzido de moradores europeus. Nestas circunstâncias precárias, a integração dos
numerosos povos indígenas tanto à cristandade barroca quanto a um regime servil
foi considerada como meio imprescindível para viabilizar esta colônia tardia.
Porém, os modos para alcançar estas metas tornaram-se logo um pomo de discórdia
entre moradores e missionários. Apesar das múltiplas conivências entre estes
dois agentes coloniais, suas controvérsias em torno dos índios produziram,
durante o século XVII, compromissos jurídicos frágeis que geravam um clima
social de permanente tensão.
Luís
Figueira foi o primeiro jesuíta a apontar o grande potencial da região
amazônica para o apostolado missionário, sobretudo por causa do grande
contingente de povos indígenas. O seu Memorial sobre as terras e das gentes,
escrito em 1637, o revela de forma clara e concisa. O padre tentou dar um enquadramento
concreto ao seu plano por meio da fundação oficial da Missão em 1639. Contudo,
sua morte trágica implicou uma longa interrupção das atividades inacianas.
Antônio Vieira retomou o projeto e instaurou, a partir de 1653, a tutela
exclusiva da Companhia de Jesus sobre os índios. Este monopólio permitiu uma
política expansionista. Em pouco tempo, a rede de aldeamentos se estendeu pelo
vale amazônico até mais de mil quilômetros rio acima. O Regulamento das Missões
ou Visita, escrito no fim dos anos 1650, definiu, com base na “dupla
administração”, as relações entre missionários e índios no interior dos
aldeamentos. O texto serviu fundamentalmente para garantir a coesão dos poucos
inacianos num ambiente em que a solidão e a dispersão tenderam a minar a
motivação apostólica.
A
exclusão dos colonos na redefinição das relações étnico-sociais e econômicas,
promovida por Vieira, está na origem do levante de 1661 que forçou o famoso
padre ao exílio e aboliu o monopólio da Companhia de Jesus sobre os indígenas.
Entre os missionários que conseguiram escapar da expulsão, destacou-se um jovem
luxemburguês formado em direito. João Felipe Bettendorff tornou-se o personagem
central das quatro últimas décadas do século XVII. Ele mesmo caracterizou este
período de “agonia”, fazendo, repetidamente, alusão aos graves problemas
econômicos, incertezas jurídicas e dissensões internas entre os missionários.
Um segundo levante dos colonos em 1684 – de fato, uma resposta às reformas sócio-econômicas
impostas pela metrópole –, fez relançar as negociações acerca das relações entre
os principais agentes sociais da colônia. Bettendorff influenciou, de maneira
decisiva, a formulação do Regimento das Missões, promulgado em 1686.
Esta lei constitui basicamente um compromisso, ou melhor, um modus vivendi que
parte de uma expressiva autonomia dos aldeamentos. Com efeito, uma argumentação
de cunho técnico-jurídico, adaptada a uma conjuntura modificada, substituiu o
discurso anterior – o de Vieira –, ainda caracterizado pelas idéias da
filosofia e teologia neo-escolásticas.
Ribeirinhos da
Amazônia, descendentes dos índios aldeados nas missões religiosas dos séculos
XVII e XVIII. Foto recente.
Sem
dúvida, Memorial, Visita e Regimento contribuíram,
enquanto textos programáticos, para que os aldeamentos se tornassem instrumento
eficaz de estruturação do espaço amazônico mediante uma extensa rede de núcleos
habitacionais interligadas e, também, de integração das populações ameríndias à
sociedade colonial através de um sistema de estrito controle sociocultural. Não
obstante, no interior das missões surgiu um processo peculiar de etnogênese
que, preservando a matriz indígena, agregou elementos ibero-barrocos
recém-introduzidos às tradições ameríndias herdadas. A cultura popular da Amazônia
– sobretudo o modo de viver das populações ribeirinhas ou caboclas – resulta
destas dinâmicas criativas e constitui hoje um legado vivo do projeto jesuítico
implantado no turbulento século XVII.