terça-feira, 25 de setembro de 2012

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Parte: 03 Resumos Das Falas Da 1ª Mesa Redonda


AS MISSÕES JESUÍTICAS E FAZENDAS NO ENTORNO DE BELÉM: AS MISSÕES DE MORTIGURA E SUMAÚMA

Frederik Luizi Andrade de Matos (mestrando PPHIST/UFPA)

            O trabalho catequético na região amazônica durante os séculos XVII e XVIII foi conduzido pelos missionários de diversas ordens religiosas: franciscanos (divididos em suas três Províncias: Santo Antonio, Piedade e Conceição), mercedários, carmelitas e jesuítas, se empenharam na tarefa de expandir a fé católica e o reino português nos chamados “sertões” amazônicos. Mas entre todas as ordens, os jesuítas se destacaram nesse trabalho missionário, tanto pela sua organização para atuarem nas diversas aldeias administradas por seus padres, como também para a definição de uma chamada política indigenista para o Estado do Maranhão e Grão-Pará.

Passaram pelo Maranhão durante o período em que os jesuítas permaneceram na região, uma grande quantidade de padres que marcaram seus nomes na história da Amazônia – seja a partir de seus feitos; seus escritos, cartas e crônicas; ou pela sua atuação no tocante a questão indígena, principalmente com relação ao acesso a essa mão-de-obra buscada pelos colonos – entre eles destacam-se os padres Luis Figueira, Antonio Vieira, João Felipe Bettendorff e João Daniel. Esses homens contribuíram para a formatação do trabalho missionário jesuítico na Amazônia, porém, tanto estes como os outros inacianos sofreram com as críticas e acusações formuladas pelos colonos.

Buscaremos neste presente trabalho então situarmos neste contexto de conformação da Companhia de Jesus no Maranhão mostrar como se deu a instalação de duas aldeias jesuíticas próximas a Belém, Mortigura e Sumaúma, durante o século XVII, que depois foram transformadas em vilas com os nomes de Barcarena e Abaetetuba. Tentaremos demonstrar como era o cotidiano desses lugares, a partir de relatos de um dos mais famosos cronistas jesuítas, a crônica do padre João Felipe Bettendorff, que durante algum tempo trabalhou como missionário na aldeia de Mortigura, e também da documentação produzida nesse período, principalmente no que se referia ao trato e convívio com o indígena.

A partir do exemplo dessas aldeias podemos avaliar a produção de um patrimônio material vinculado aos inacianos, principalmente no que se referiam a residências dos padres, as igrejas, ornamentos religiosos, e principalmente fazendas com produção de uma agricultura sustentável, organizada pelos padres. Esse patrimônio também se vinculava ao Colégio de Santo Alexandre em Belém, já que durante algum tempo a aldeia de Mortigura esteve ligada diretamente ao Colégio. Cabe destacar como os missionários administravam suas fazendas, e o modo de produção desenvolvido nessas localidades, gerando uma produção agrícola e lucros, acarretando críticas por parte dos colonos e autoridades régias por conta desse possível comércio e lucro efetuado pelos religiosos, durante os anos em que os inacianos atuaram no Estado do Maranhão e Grão-Pará.

Parte: 02 Resumos Das Falas Da 1ª Mesa Redonda


AS ATIVIDADES ECONÔMICAS DA COMPANHIA DE JESUS NA AMAZÔNIA COLONIAL PORTUGUESA

Raimundo Moreira das Neves Neto (doutorando PPHIST/UFPA)

Durante a época moderna, a Companhia de Jesus sempre teve em mente a ideia de que ela não poderia se tornar dependente das verbas do padroado régio para financiar as suas missões, como a Missão do Maranhão e Grão Pará. Assim, ela não tardou a conquistar um vasto patrimônio fundiário por diversas vias, tais quais: compras diretas, trocas, arrematações e pedidos de sesmarias. De tal feita, suas fazendas geravam um considerável lucro a partir de atividades de criação de animais, cultivo de diversos gêneros (café, cana de açúcar etc.), expedições às drogas do sertão (cravo, cacau, salsa etc.) e produção de canoas. A produção e comércio de tais gêneros ainda eram favorecidos por um conjunto de benefícios que o monarca português concedia aos padres, como a isenção de impostos alfandegários de tudo o que eles comercializassem. Por outro turno, para além dos benefícios reais, a própria Companhia de Jesus não se furtava a agraciar com cartas de irmandade aos colonos de certa proeminência financeira, o que é significativo quando percebemos que esses mesmos moradores legavam as suas propriedades aos colégios jesuíticos.

A gerência dos rendimentos das propriedades jesuíticas não representava matéria embaraçosa aos padres, pois a administração/contabilidade inaciana contava com um alto grau de aperfeiçoamento, fazendo frente até mesmo a administração da fazenda real. Nesse sentido, merece destaque as figuras dos padres reitores e procuradores. Ambos trabalhavam intensamente na conquista/maximização de bens e na resolução de pleitos que envolviam o patrimônio material jesuítico. Pedidos de sesmarias às autoridades, recebimento de doações por parte de devotos, solicitação de côngrua (ou aumento da mesma), compra de terras, representação às diversas instâncias quando de litígios que envolvessem uma dada propriedade ou um dado privilégio e, é claro, a administração das fazendas: eis alguns trabalhos que, no Estado Maranhão e Grão Pará, eram exercidos por reitores e procuradores.  Toda essa estrutura administrativa era centralizada na figura dos colégios inacianos.

Sabidamente, somente os colégios e casas de formação da Companhia de Jesus possuíam bens próprios (como fazendas e imóveis urbanos) dos quais se sustentavam. Tal especificidade dos colégios e casas de formação em deter o patrimônio material da Ordem foi uma determinação do próprio Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia, a partir das Constituições Jesuíticas, com o intuito de manter a pobreza dos religiosos. Em outras palavras, quem possuía os bens materiais da Ordem não eram os padres, mas sim os colégios jesuíticos. Como podemos perceber, o colégio jesuítico não tinha uma função meramente educacional, mas, sobretudo, de centro gerenciador de todo o patrimônio material da Ordem, pois todas as fazendas e demais propriedades que a Companhia de Jesus conquistasse estavam atreladas a ele. Singular, nesse sentido, é a própria arquitetura de tais prédios.

As construções jesuíticas seguiam o mesmo estilo aplicado na ereção de conventos e mosteiros – disposição em quadra ou retângulo – de modo a formar um ou mais pátios interiores. O pátio teria como objetivo o descanso/reflexão dos religiosos, daí eles serem rodeados de galerias que permitiam a sombra. Os pátios jesuíticos, todavia, não possuíam galerias, e faziam fronteira diretamente com os muros da construção (igreja ou colégio), permitindo uma maior iluminação solar. Tal especificidade do pátio jesuítico estava intimamente ligada à sua função dentro do colégio: circulação ou meio termo entre reclusão e a vida ativa da Companhia. Nesse sentido, junto ao pátio do Colégio de Santo Alexandre (Belém do Pará), eram erigidas construções menores para recolher os muitos gêneros que vinham das missões do interior do Pará, como as drogas do sertão. O pátio do colégio, portanto, servia de armazém para tais produtos que eram enviados para outras partes da América Portuguesa, como o Estado do Brasil, e até mesmo para o Reino. 

Parte: 01 Resumos Das Falas Da 1ª Mesa Redonda


ALDEAMENTOS E COLÉGIOS: IMPLANTAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS NA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SÉCULO XVII)

Karl Heinz Arenz, UFPA

Durante todo o século XVII, a Amazônia portuguesa constituiu uma fronteira enquanto “espaço granular, descontínuo, sem estruturas fixas, permeado por vãos”. A viabilidade da possessão lusa na bacia amazônica dependeu da rápida integração dos povos indígenas ao projeto colonial, que prescrevia a catequização dos mesmos. No intuito de colaborar nesta tarefa, os jesuítas tentaram diversas vezes (1607, 1615, 1622, 1639, 1653) fixar-se no então Estado do Maranhão e Grão-Pará.

A sua implantação, que revelou ser um processo longo e complexo, foi impregnada pelas ideias e as ações de três personagens: Luís Figueira (1574-1643), António Vieira (1608-1697) – ambos de origem portuguesa – e o luxemburguês João Felipe Bettendorff (1625-1698). Cada um destes padres contribuiu a (re)fundar e consolidar a missão da Companhia de Jesus num contexto marcado por crises socioeconômicas e incertezas político-jurídicas. Luís Figueira foi o primeiro a apontar o grande potencial da região amazônica, tanto em vista da conversão promissora do grande contingente de povos indígenas quanto em razão da exploração das riquezas naturais, tornando-se o fundador oficial da Missão em 1639; Antônio Vieira retomou, depois da morte trágica de Figueira (1643), o projeto missionário, obtendo, em 1655, a tutela exclusiva dos inacianos sobre os índios e expandindo a rede de aldeamentos; João Felipe Bettendorff consolidou a Missão após o levante dos colonos e a expulsão de Vieira (1661), buscando um compromisso viável para moradores e religiosos.

Os aldeamentos ocuparam um lugar primordial no projeto jesuítico. Destinados a fomentar a conversão dos índios ao cristianismo, estes estabelecimentos catequéticos revelaram ser, desde a sua introdução nos primórdios da colonização, núcleos habitacionais de grande importância estratégica, demográfica e econômica. De fato, as missões forneceram uma mão de obra servil – durante décadas a única disponível – cujos conhecimentos das florestas e várzeas eram imprescindíveis para a coleta das drogas do sertão e a implementação de uma agricultura extensiva. Por isso, grande parte da legislação colonial concernente ao Estado do Maranhão e Graõ-Pará tratou do status jurídico e das condições de trabalho das populações aldeadas sob o controle vigilante dos missionários.

Os inacianos provaram ser muito zelosos em seus intentos de negociar, em diversas ocasiões (1655, 1680 e 1686), um enquadramento legal para as missões que impedisse qualquer interferência direta por parte das autoridades e dos colonos. A expressiva autonomia contribuiu a engendrar, no seio dos aldeamentos, um complexo sistema de relações interculturais entre índios e missionários que instaurou um “jogo de comunicação” de dimensão convergente. Ambos os agentes sociais foram forçados a (re-)significar certos padrões de vida – tanto os seus como os dos outros –, estabelecendo códigos culturais compartilhados.

De fato, a historiografia referente às missões partiu durante muito tempo e de forma quase exclusiva do binário antagônico “vencedores-vencidos”, julgando, de um a lado, os missionários ou como impostores coloniais ou heróis civilizadores, e, de outro lado, relegando os índios a um papel ou de vítimas passivas ou de resistentes combativos. Na realidade, o quotidiano nestas aldeias catequéticas – lugar de intenso convívio social devido a uma crescente convergência ritual-simbólica – propiciou o surgimento de um modo de vida compartilhado entre missionários e índios, além dos dogmas e regulamentos oficialmente estabelecidos. Assim, a organização clânica, a produção e a propriedade comunitárias, o saber terapêutico, certas danças rituais e a “língua geral” – o nheengatu – tornaram-se elementos culturais típicos no interior das missões inacianas; presentes, aliás, até hoje no modo de viver dos ribeirinhos ou caboclos da Amazônia. Os religiosos favoreceram assim, já no século XVII, uma homogeneização cultural de matriz indígena para lidar melhor com a multiplicidade das culturas ameríndias.

Como no Estado do Brasil – mais ao sul –, os padres basearam-se na macrocultura tupi, embora muitos povos indígenas da Amazônia não pertencessem a este universo étnico-linguístico. Foram os Tupinambás, estabelecidos ao longo o litoral atlântico entre o Pará e o Maranhão, que serviram de referência cultural para os missionários. Os dois colégios da Missão do Maranhão, em São Luís e Belém, tiveram, ao longo do século XVII, um papel fundamental enquanto centros de administração, reflexão, oração, formação, repouso, abastecimento e comércio. Assim, a rede dos aldeamentos foi diretamente gerenciada a partir destas casas centrais que marcam até hoje a silueta do centro histórico das duas cidades.

Convite


Projeto de Extensão
“A Herança Jesuítica Revisitada: as múltiplas faces do patrimônio histórico como instrumentalização pedagógica e exercício de cidadania”

CONVIDA

Como parte dos preparativos para a comemoração da efeméride dos 400 anos da Cidade de Belém do Pará, a equipe do projeto de extensão A Herança Jesuítica Revisitada convida a comunidade acadêmica para participar da primeira mesa redonda intitulada “A presença jesuítica na Amazônia: projeto missionário e base econômica”, que ocorrerá no Centro de Memória da Amazônia, dia 27 de setembro, das 9:00 às 11:30 horas. A mesa será composta pelos palestrantes Karl Arenz (FAHIS, UFPA), Raimundo Neves Neto (doutorando PPHIST-UFPA) e Frederik Matos (mestrando PPHIST-UFPA).

Será emitido certificado de três horas aos  participantes da mesa redonda.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

“LEVAR A LUZ DE NOSSA SANTA FÉ AOS SERTÕES DE MUITA GENTILIDADE”: FUNDAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA MISSÃO JESUÍTA NA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SÉCULO XVII) – Parte 03




Karl Heinz Arenz
Diogo Costa Silva



3. A consolidação sob João Felipe Bettendorff

O padre João Felipe Bettendorff pode ser associado a uma das fases mais difíceis do “século jesuíta” na Amazônia Portuguesa. De fato, a região viveu entre 1661 a 1693 uma grande instabilidade econômica e incerteza jurídica. Além do padre luxemburguês, destacaram-se neste período outros jesuítas não-portugueses, sobretudo os italianos João Maria Gorzoni e Pedro Luís Consalvi. Quanto à trajetória de Bettendorff, ele nasceu em 1625, em Lintgen, no então Ducado de Luxemburgo, e entrou – após os estudos das humanidades, da filosofia e do direito romano – no noviciado da Companhia de Jesus na Província Galo-Belga96. Logo após a sua ordenação sacerdotal, em 1659, ele viajou, via Portugal, para a Missão do Maranhão a qual ele tinha sido destinado. No dia 20 de janeiro de 1661, ele aportou, junto com seu compatriota Gaspar Misch, em São Luís. Logo em seguida, os dois foram enviados pelo padre Vieira ao vale do Amazonas. Bettendorff se instalou como primeiro missionário residente na confluência do Tapajós com o Amazonas (hoje Santarém); Misch ficou nas cercanias do fortim de Gurupá97.

A historiografia conhece Bettendorff principalmente como autor da Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Sua importância como cronista ofusca o fato de que o padre luxemburguês deteve, entre 1662 e 1693, quase ininterruptamente, todos os cargos-chave da Missão: reitor de colégio, superior e procurador. Neste contexto, a expulsão repentina de Vieira, em 1661, e a rápida ascensão de Bettendorff no seio do grupo dos missionários que conseguiram escapar do exílio ou voltar logo, levantam a questão quanto à relação entre ambos, sobretudo no que se refere à continuação do legado administrativo-jurídico de Vieira. Fernando Amado Aymoré e José Vaz de Carvalho tendem a ver em Bettendorff um “traidor” dos ideais de seu predecessor; Aymoré o denomina até “anti-Vieira”.98 No mesmo sentido, Carlos de Araújo Moreira Neto, Eduardo Hoornaert e Hugo Fragoso opõem Vieira como articulador de uma suposta “fase profética” a Bettendorff como mentor de um período de caráter “empresarial”.99 Já Maria Liberman qualifica o padre luxemburguês como “fiel continuador de Vieira”.100 Sem polemizar estas posições categóricas, tem que se levar em conta que a conjuntura sócio-econômica dos anos 1660 e 1670 não permitiu ao novo superior uma simples continuação da política monopolista e expansionista do padre Antônio Vieira.

Bettendorff chegou à Missão alguns meses antes do levante de 1661. Devido a sua origem centroeuropéia e seu longo percurso formativo (1635-1659), o padre luxemburguês demonstrou ter uma concepção diferente quanto ao projeto da Missão. Primeiro, ele favoreceu claramente uma aproximação com os colonos pelo viés das atividades pastorais e do acompanhamento espiritual, promovendo confrarias populares e agraciando benfeitores e devotos com o título de “irmão da Companhia”. Segundo, ele deu às questões indigenistas uma dimensão jurídico-técnica, pois sua argumentação não endossou mais o pressuposto vieiriano de cunho personalista (o índio tutelado), mas antes frisou o aspecto institucional (o aldeamento autônomo). Terceiro, diante das tensões no interior da própria Missão – dissensões entre os missionários de origens e mentalidades diferentes e falta de apoio material por parte das Províncias de Portugal e do Brasil – Bettendorff buscou uniformizar a vida comunitária e o discurso catequético dos missionários e favoreceu os contatos com a Província lusa101. Assim, o proceder pragmático do padre luxemburguês contribuiu significativamente à consolidação da Missão do Maranhão entre a expulsão de Vieira, em 1661, e a divisão dos aldeamentos entre as ordens religiosas atuantes na Amazônia, em 1693.

3.1. Os anos de incerteza (1661-1684)

Em 1662, Bettendorff foi nomeado superior provisório em Belém, mas já no ano seguinte ele recebeu a incumbência de gerenciar a casa central da Missão em São Luís. Nas duas casas – que se tornariam colégios em 1670 – o padre luxemburguês reorganizou a base econômica, reativando fazendas e erguendo oficinas, e promoveu a atuação pastoral entre os moradores por meio de pregações e confissões regulares102. Mesmo assim, Bettendorff apresentou, em 1665, no seu primeiro relatório ao Superior Geral, um quadro bastante negativo da Missão103. Trata-se de um primeiro balanço de sua presença quadrienal na Amazônia. Ele lamenta, sobretudo, o agravamento da exploração infligida pelos moradores – com a conivência do governador Rui Vaz de Siqueira – aos índios desde o fim do monopólio jesuítico (1663) e a crescente mortalidade em razão das epidemias, dos trabalhos pesados e da falta de alimentos. Os abusos denunciados por Bettendorff foram confirmados pelos padres Pedro Luís Consalvi e João Maria Gorzoni. O primeiro fala, em 1663, de tropas ilegais que partiram abertamente para capturar índios com o simples intuito de farli schiavi dei bianchi (“fazê-los escravos dos brancos”). O segundo aponta, em 1665, os excessos de trabalho aos quais os moradores forçaram os índios sem pagar a remuneração devida104.

A missiva de Bettendorff esconde tampouco os “choques culturais” que ele experimentou frente ao universo ameríndio. Assim, ele chama os índios de “pouco interessados na doutrina e nas coisas sagradas, negligentes com respeito a Deus e à salvação, estúpidos, imbecis, brutos e quase que com uma tendência inata para a inércia e a imoralidade105”. O luxemburguês exprime a sua frustração por meio do lugar-comum da suposta obstinação ou indiferença dos indígenas frente à catequização que, aliás, perpassa as cartas e crônicas dos séculos XVII e XVIII106. Outra preocupação que Bettendorff articula, refere-se à infra-estrutura precária da Missão e à falta de zelo pastoral e de formação intelectual dos próprios missionários. Segundo ele, igrejas, capelas e residências no interior se encontravam num estado deplorável, as confrarias nas cidades revelavam pouco fervor e um curso complementar de teologia moral para os padres mais jovens deixava muito a desejar107. Bettendorff repete este quadro sinistro em outras cartas à cúria generalícia – geralmente com o intuito de conseguir o envio de mais missionários e subsídios108.

A penúria da Missão estava ligada à crise econômica geral, que afligiu todo o mundo colonial na segunda metade do século XVII. Gravemente atingido, o Império Português tentou dinamizar a rede comercial no Atlântico109. No intento de integrar melhor a colônia amazônica, o príncipe-regente D. Pedro II enviou, no dia 19 de setembro de 1676, uma carta régia às câmaras de São Luís e Belém. Esta missiva instaurou o “estanco do ferro”, isto é, a importação e comercialização de ferro, aço e ferramentas sob o controle da fazenda real. Ao mesmo tempo, ela definiu a taxação das drogas do sertão destinadas à exportação110. O príncipe incentivou, neste contexto, a coleta e o cultivo da baunilha e do cacau, dois produtos muito apreciados na Europa naquele momento111.

Contudo, a política de integração da Coroa não foi somente de cunho econômico. Ela previu também a ereção de uma diocese. O motivo principal para tal propósito foi mais político do que pastoral. De fato, um bispo estreitamente ligado à Coroa tenderia a apoiar incondicionalmente as iniciativas da metrópole e constituiria um contrapeso frente à expressiva influência dos religiosos, razão do constante descontentamento dos colonos. O prelado seria, por isso, incluído no procedimento da repartição anual da mão-de-obra indígena, aumentando a influência da Coroa nesta prática de suma relevância econômica112. A diocese de São Luís foi fundada em 1677, sendo seu primeiro bispo D. Gregório dos Anjos113. O novo prelado exigiu logo que os jesuítas lhe obedecessem enquanto autoridade eclesiástica máxima da colônia, recusando-se a conferir a certos padres a autorização para ouvirem confissões, mesmo nas aldeias sob os cuidados pastorais da Companhia de Jesus114. Numa época que viu o sacramento da penitência como um meio essencial para a evangelização, esta medida equivalia a uma afronta sem igual contra os missionários. Finalmente, encontrou-se um compromisso graças a uma mediação do padre Vieira: os jesuítas cederiam ao bispo no que diz respeito às rubricas canônicas e litúrgicas, mas não permitiriam sua interferência na administração espiritual das missões por se tratar de um direito garantido pelo rei115.

Na mesma época, a metrópole deu continuidade às reformas. Duas leis, inspiradas pelo padre Vieira e promulgadas em 1º de abril de 1680, ampliaram as condições de integração da colônia amazônica à rede comercial do Atlântico português. A primeira anunciou três medidas importantes: a introdução de “negros da Costa de Guiné” para “a cultura de searas [plantações agrícolas] e novas drogas [produtos florestais]”; a continuação das repartições anuais dos índios aldeados; enfim, o monopólio jesuítico sobre os descimentos de índios do “sertão” e, também, sobre a fundação de novos aldeamentos116. A segunda lei declarou os índios como doravante livres de toda forma de cativeiro e servidão. Porém, a nova liberdade referiu-se, na prática, à escolha dos serviços, sendo que o confinamento em “aldeas de Indios livres e catholicos” continuou sendo obrigatório117.

Um padre jesuíta no Brasil. Chapéu e bastão apontam para a itinerância dos missionários. Pintura do século XVIII.

Todas estas medidas visaram formar uma mão-de-obra dócil e adaptada às novas iniciativas econômicas. O nexo com as provisões anteriores sobre a importação de ferro, a taxação das drogas do sertão e a flexibilização da repartição dos índios é evidente. Além disso, a introdução de escravos africanos faria com que os aldeamentos fossem – conforme o desejo de Vieira – menos visados como “reservatórios” de mão-de-obra. A fundação da Companhia Geral do Comércio do Estado do Maranhão e Grão-Pará, em 12 de setembro de 1682, completou as medidas promulgadas anteriormente; haja vista que este empreendimento foi projetado para viabilizar o intercâmbio transatlântico com base na importação de escravos africanos e na exportação dos produtos florestais e agrícolas118. Para garantir os investimentos necessários na nova companhia, as concessões comerciais foram conferidas em forma de monopólio a mercadores lisboetas119. Tentou-se, assim, estabelecer no Atlântico Sul – ao lado da já existente rota Brasil- Angola – um segundo eixo de comércio rentável, ligando os dois maiores portos da Amazônia ao entreposto de Cacheu na costa da Guiné.

Mas este complexo “pacote sócio-econômico”, introduzido entre 1676 e 1682, ao invés de inspirar confiança aos colonos, gerou um clima de revolta, sobretudo na cidade de São Luís. De fato, os objetivos metropolitanos revelaram ser pouco condizentes com a precariedade da principal cidade da colônia e com a situação dos moradores que possuíam fazendas e engenhos de médio porte e controlavam o modesto comércio local120. Laura de Mello e Souza fala de “dois projetos inflexíveis” cujo afrontamento criaria uma situação nova121. De fato, em fevereiro de 1684, os moradores mais frustrados decidiram rebelar-se sob a liderança dos irmãos Manuel e Tomás Beckman e Jorge Sampaio, integrantes da camada abastada que mais sentiu os impactos da crise122. Apesar de semelhanças com o levante de 1661, esta segunda insurreição mostrou ser mais complexa por três razões123. Primeiro, os colonos viram o seu acesso à mão-de-obra nativa restrito pela lei de 1680, pois havia menos repartições. Segundo, os escravos recém-introduzidos da África estavam fora de seu alcance devido ao preço elevado. Terceiro, sua implicação – já mínima – no intercâmbio com a metrópole foi “sufocada” em razão do caráter monopolista da companhia de comércio.

Na noite do dia 23 de fevereiro, os revoltosos conseguiram ocupar a cidade. Em frente ao colégio jesuítico, a multidão agitada exigiu que os inacianos renunciassem à sua participação na administração dos aldeamentos e na repartição dos índios. Os jesuítas rebateram estas reivindicações, alegando que elas seriam contrárias à legislação em vigor cuja modificação caberia unicamente ao rei. Mas, excitados e incapazes de analisar o caráter multifatorial de sua situação, os moradores acabaram projetando toda responsabilidade por suas mazelas na Companhia de Jesus. Como os inacianos não cederam, eles foram postos em prisão domiciliar dentro do próprio colégio. No dia 19 de março, a Junta dos Três Estados124 – órgão executivo dos revoltosos – decretou sua expulsão sob o pretexto de terem abusado de seus privilégios e indevidamente acumulado riquezas125. Uma semana depois, no dia 26, foi executada a deportação126.

Juntamente com outros missionários expulsos, Bettendorff alcançou Recife em 20 de maio de 1684. Após uma primeira deliberação com os confrades da Província do Brasil e uma audiência com o governador pernambucano, os padres João Felipe Bettendorff e Pedro Pedrosa foram enviados até Bahia para consultar o Superior Provincial Alexandre Gusmão. Estando este ausente, os dois emissários conferenciaram com o padre Vieira que, desde 1681, estava de volta ao Brasil. Ficou decidido que Bettendorff viajaria imediatamente à metrópole para defender como procurador ad hoc a causa da Missão. No dia 23 de outubro de 1684, o padre luxemburguês aportou, em companhia do irmão Marcos Vieira, em Lisboa 127.

3.2. As medidas de reorganização (1685-1693)

Apesar das dúvidas de certos padres quanto à capacidade diplomática de seu confrade luxemburguês128, Bettendorff conseguiu logo introduzir-se na corte. Segundo seu próprio relato, o rei D. Pedro II mostrou-se interessado e indicou-lhe como interlocutor o secretário régio Roque Monteiro Paim, homem favorável à restituição dos jesuítas129. Bettendorff apresentou ao monarca um memorando de doze propostas que serviriam de base para as negociações posteriores (1684-1686).130 O documento prevê uma revisão completa das relações entre jesuítas, moradores e autoridades coloniais. Mas, ao invés de pedir meramente uma volta imediata à Amazônia, reivindicou-se: a restituição da “dupla administração” dos aldeamentos (perdida em 1663, restituída em 1680 e novamente suprimida em 1684); a reestruturação externa e interna dos aldeamentos (numericamente menos, mas demograficamente maiores, com uma equipe permanente de missionários residentes e acesso limitado para militares e colonos); um controle mais eficaz sobre expedições e repartições (para evitar abusos); enfim, a garantia de um apoio financeiro por parte do rei (mediante envio regular de subsídios). O objetivo principal destas propostas foi, antes de tudo, a obtenção de condições favoráveis para um recomeço das atividades missionárias sem ambigüidades, ou seja, um modus vivendi aceitável para todos.

Diante da gravidade da situação, foi constituída uma junta especial para tratar da contenda. Os seus integrantes eram conselheiros régios e altos funcionários. Bettendorff não fez parte, mas exerceu uma influência significativa por meio de seu contato com Roque Monteiro Paim131. Além disso, ele contou com o apoio de confrades que atuaram na corte e gozou da benevolência da nova rainha de origem alemã, D. Maria Sofia. Se a nomeação do militar experiente Gomes Freire de Andrade ao cargo de governador do Maranhão, ainda em 1684, parecia significar um primeiro sucesso para a causa jesuítica, a aparição dos procuradores dos moradores, Tomás Beckman e Eugênio Ribeiro, foi motivo de inquietação; mas ambos foram logo presos e desterrados132. Paradoxalmente, a chegada inesperada do Superior da Missão Jódoco Perret significou uma ameaça maior. Homem de caráter impulsivo, o padre suíço mostrou-se favorável à supressão da Missão e defendeu sua posição com veemência133. Bettendorff resolveu o incidente ao manter Perret afastado da cidade de Lisboa134.

Quando foi decretada a restituição do colégio de São Luís, em meados de 1685, o bom andamento dos debates parecia garantido e o fim das conferências próximo135. No entanto, várias petições da câmara de Belém, o envio de um procurador hábil – o antigo capitão-mor do Grão-Pará Manoel Guedes Aranha –, e a crescente influência do governador Gomes Freire de Andrade ampliaram o escopo das negociações. A repartição tripartite anual da mão-de-obra tornou-se o ponto mais polêmico, haja vista que o número de trabalhadores disponíveis em certas “aldeias de repartição” era demasiado pequeno para uma divisão eficaz e os prazos de ausência permitida não correspondiam às condições dos serviços de regime sazonal (coleta das drogas do sertão). Os jesuítas cederam, enfim, no que tange à repartição que passou a ser bipartite – entre os moradores e os aldeamentos – e aos períodos de trabalho fora das missões. Em seguida, quando foi abordada a questão da administração temporal, os moradores insistiram na sua completa abolição, alegando que os inacianos deveriam dedicar-se exclusivamente à evangelização. Em resposta, Bettendorff exigiu categoricamente a restituição do poder temporal sobre os índios, afirmando que “sem a administração temporal dos índios, a Missão não pode subsistir136”. Em face deste impasse, Gomes Freire declarou-se favorável ao restabelecimento da “dupla administração”. A junta acatou a posição do governador e, logo em seguida, recomendou-a ao rei 137.

Com base neste “pacote” de compromissos, foi promulgado, em 21 de dezembro de 1686, o Regimento das Missões. Esta masterpiece of legislation (“peça-mestra da legislação”) – na opinião de Mathias Kiemen138 – conjuga, em linguagem jurídico-técnica, os objetivos da “salvação das almas” dos índios com o regime de confinamento e trabalho obrigatórios. Neste sentido, a nova lei objetiva

dar fôrma conveniente à reduçaõ do Gentio do Estado do Maranhaõ, para o gremio da Igreja, & a repartição, & ser o vicio [a obrigação] dos Indios, que depois de reduzidos assistem nas aldeas, querendo de tal modo satisfazer ao bem espiritual, & temporal de huns, & outros, que inteyramente fosse satisfeyto o serviço de Deos, para bem de suas almas, & se encaminhasse à vida de todos com honesto trabalho della, ...139

No documento há quatro eixos principais que permitem subsumir o conjunto de seus vinte e quatro parágrafos. Primeiro [§§ 1-7], os aldeamentos terão uma expressiva autonomia, garantida mediante: a restituição da “dupla administração”, a nomeação de dois “procuradores dos índios” e a supervisão da entrada de não-indígenas como da saída de indígenas. Além disso, sujeitar-se-á o casamento misto a controles para evitar a eventual escravização da parceira ameríndia. Segundo [§§ 8-9, 22], os aldeamentos serão reagrupados em lugares estratégicos com, respectivamente, uma população mínima de 150 casais, facilitando, assim, as repartições e agilizando o intercâmbio demográfico e econômico entre eles. Terceiro [§§ 10-19], os serviços dentro e fora dos aldeamentos serão flexibilizados nestes termos: haverá um inventário anual da mão-de-obra masculina que será, em seguida, bipartida. Os índios que forem destinados a trabalhos fora da missão terão definidos, por uma comissão mista, os tipos de serviço, os períodos de ausência – no Maranhão até quatro e no Pará até seis meses conforme a sazonalidade das safras – e o valor da remuneração. Quanto aos missionários, as residências que ficarem a trinta léguas das principais cidades, receberão vinte e cinco índios (mais tarde, casais) para seus serviços. Quarto [§§ 20-21, 23-24], certas necessidades dos moradores (sobretudo, a requisição de índios como remadores para transportes de porte maior, ou de índias como amas de leite ou ajudantes na produção de farinha de mandioca) e dos índios recém-descidos (provisoriamente instalados em aldeamentos à parte e, por dois anos, isentos de serviços exteriores) não serão mais negadas, mas tratadas como casos excepcionais140.

Apesar do conteúdo pragmático e o teor conciliatório, a aplicação do Regimento revelou ser difícil. De fato, a persistência da falta crônica de mão-de-obra, a crescente afirmação das outras ordens (franciscanos, mercedários, carmelitas) e a ocupação progressiva do interior, por meio de uma malha de fortes e fortins, marcaram a conjuntura no último quartel do século XVIII141. Diante deste quadro, um alvará readmitiu, em 1688, a organização de tropas de resgate142. Poucos anos depois, em 1693, a rede de aldeamentos foi dividida entre todas as ordens presentes na colônia; haja vista que a Companhia de Jesus
não tinha padres suficientes para garantir um atendimento pastoral e administrativo adequado143. Conforme os acordos, os jesuítas se retiraram das missões da margem esquerda do Amazonas e das mais recentes sitas nos rios Madeira e Negro144. É importante assinalar que, em longo prazo, a divisão favoreceu os inacianos, pois resultou em uma concentração eficaz de suas atividades e, também, de seus bens na “banda sul” do rio-mar, uma área já bem integrada às dinâmicas econômicas da colônia.

Com a crescente expansão lusa no espaço amazônico, a Missão do Maranhão entrou em contato direto com missionários que atuavam em áreas fronteiriças controladas ou reclamadas por outros europeus. Assim, o padre Samuel Fritz, jesuíta originário da Boêmia e membro da Província de Quito, desceu em 1689 o rio até Belém para cuidar de sua saúde e denunciar os abusos cometidos pelos portugueses nas missões dos rios Solimões e Negro. A presença deste inaciano, vindo de regiões pretendidas pela Coroa castelhana, incomodou não somente as autoridades, mas até seus próprios irmãos de batina. Em 1691, ele se viu forçado a voltar rio acima145. Alguns anos mais tarde, em 1696 e 1697, tomou-se conhecimento de que as investidas francesas a partir de Caiena em direção ao Cabo do Norte tiveram o acompanhamento de padres jesuítas. Dentre eles estava o padre Claude de Lamousse que serviu de capelão e intérprete146. Nos dois casos denota-se que, ao invés de priorizarem sua pertença comum à Companhia, os padres tenderam a frisar sua lealdade para com a respectiva coroa.

No que tange à implantação do Regimento das Missões no interior dos aldeamentos, evidenciou-se a necessidade de fortalecer a coesão do grupo dos missionários e de uniformizar os métodos pastorais. Neste sentido, Bettendorff tratou em 1690, enquanto Superior da Missão, de reafirmar a Visita de Vieira e de introduzir um catecismo único. Esta política objetivou evitar a dispersão do potencial jesuítico, sobretudo no contexto da chegada sucessiva de missionários jovens e inexperientes147. No mesmo intuito, o padre luxemburguês tinha publicado em 1687, durante sua estadia em Lisboa, uma reedição da famosa Arte de Grammatica da Lingua Brasílica de Luís Figueira e um catecismo bilíngüe – nheengatu-português – de sua própria autoria, o Compendio da doutrina christam na Lingua Portugueza, & Brasilica148. Além disso, Bettendorff conseguiu, em 1692, a obtenção de um aumento dos subsídios reais para os missionários conforme as disposições do padroado149. Estas medidas significaram um fortalecimento interior da Missão, servindo de complemento para a consolidação exterior alcançada mediante a autonomia das missões
(1686) e a divisão das mesmas (1693).

Apesar da aparente vantagem para a Companhia de Jesus, o Regimento das Missões teve um impacto sobre a sociedade colonial inteira, pois constituiu um modus vivendi viável que contemplou os principais interesses de todas as partes envolvidas e concernidas. Assim, os religiosos recuperaram a “dupla administração” e voltaram fortalecidos ao Maranhão como gerenciadores de aldeamentos doravante autônomos. Os moradores conseguiram um acesso mais amplo à mão-de-obra indígena, pois a bipartição e os prazos prolongados de serviço lhes forneceram mais trabalhadores por mais tempo. As autoridades metropolitanas puderam esperar da conciliação destes dois grupos-chave uma rápida estabilização sócio-econômica da precária e periférica colônia amazônica. Quanto aos índios aldeados – sem participação nenhuma nas negociações –, eles obtiveram uma relativa proteção em razão da interdição da entrada de “brancos” e mestiços nas missões e das disposições especiais para mulheres e grupos recém-descidos150. De fato, o espaço autônomo dos aldeamentos permitiu, em longo prazo, que se desenvolvesse uma cultura popular de matriz indígena na qual elementos de origem xamânico-ameríndia se justapuseram e/ou sobrepuseram aos de proveniência ibero-barroca.

O Regimento das Missões, com seu caráter técnico e teor isolacionista no que tange à compreensão da autonomia, tornou-se, para além de sua supressão em 1757, uma espécie de lei orgânica da sociedade colonial da Amazônia Portuguesa. De fato, o Diretório dos Índios151 que o substituiu, constitui basicamente uma versão “laicizada” das disposições de 1686. Por sua vez, o Regimento não teria sido possível sem as leis vieirianas de 1655 e 1680, que buscavam, de certa forma, salvaguardar o ideal da “liberdade dos índios”. Mesmo não tendo sido um “fiel continuador de Vieira” – como sugere Maria Liberman152 –, a argumentação do padre Bettendorff, proferida durante as negociações entre 1684 e 1686, não representa uma ruptura completa com a lógica de seu predecessor. Seja como for, o proceder pragmático do padre luxemburguês foi decisivo para dar ao Regimento das Missões – por sinal, a última colaboração jesuítica na legislação indigenista – um efeito relativamente durável no processo da constituição da sociedade regional nos séculos XVII e XVIII.

Conclusão

Os três personagens fundadores que se seguiram, quase em linha ininterrupta, entre 1622 e 1693, à frente da Missão do Maranhão, marcaram profundamente a presença da Companhia de Jesus como também o processo de formação da sociedade colonial nesta região “de fronteira”. Apesar de sua situação geoestratégica entre o centro do continente sul-americano e o espaço atlântico, a colônia portuguesa na Amazônia, fundada em 1621, viveu muito tempo em um relativo isolamento. Economicamente pouco rentável, em razão da predominância do extrativismo florestal e da crise econômica do século XVII, ela atraiu um número muito reduzido de moradores europeus. Nestas circunstâncias precárias, a integração dos numerosos povos indígenas tanto à cristandade barroca quanto a um regime servil foi considerada como meio imprescindível para viabilizar esta colônia tardia. Porém, os modos para alcançar estas metas tornaram-se logo um pomo de discórdia entre moradores e missionários. Apesar das múltiplas conivências entre estes dois agentes coloniais, suas controvérsias em torno dos índios produziram, durante o século XVII, compromissos jurídicos frágeis que geravam um clima social de permanente tensão.

Luís Figueira foi o primeiro jesuíta a apontar o grande potencial da região amazônica para o apostolado missionário, sobretudo por causa do grande contingente de povos indígenas. O seu Memorial sobre as terras e das gentes, escrito em 1637, o revela de forma clara e concisa. O padre tentou dar um enquadramento concreto ao seu plano por meio da fundação oficial da Missão em 1639. Contudo, sua morte trágica implicou uma longa interrupção das atividades inacianas. Antônio Vieira retomou o projeto e instaurou, a partir de 1653, a tutela exclusiva da Companhia de Jesus sobre os índios. Este monopólio permitiu uma política expansionista. Em pouco tempo, a rede de aldeamentos se estendeu pelo vale amazônico até mais de mil quilômetros rio acima. O Regulamento das Missões ou Visita, escrito no fim dos anos 1650, definiu, com base na “dupla administração”, as relações entre missionários e índios no interior dos aldeamentos. O texto serviu fundamentalmente para garantir a coesão dos poucos inacianos num ambiente em que a solidão e a dispersão tenderam a minar a motivação apostólica.

A exclusão dos colonos na redefinição das relações étnico-sociais e econômicas, promovida por Vieira, está na origem do levante de 1661 que forçou o famoso padre ao exílio e aboliu o monopólio da Companhia de Jesus sobre os indígenas. Entre os missionários que conseguiram escapar da expulsão, destacou-se um jovem luxemburguês formado em direito. João Felipe Bettendorff tornou-se o personagem central das quatro últimas décadas do século XVII. Ele mesmo caracterizou este período de “agonia”, fazendo, repetidamente, alusão aos graves problemas econômicos, incertezas jurídicas e dissensões internas entre os missionários. Um segundo levante dos colonos em 1684 – de fato, uma resposta às reformas sócio-econômicas impostas pela metrópole –, fez relançar as negociações acerca das relações entre os principais agentes sociais da colônia. Bettendorff influenciou, de maneira decisiva, a formulação do Regimento das Missões, promulgado em 1686. Esta lei constitui basicamente um compromisso, ou melhor, um modus vivendi que parte de uma expressiva autonomia dos aldeamentos. Com efeito, uma argumentação de cunho técnico-jurídico, adaptada a uma conjuntura modificada, substituiu o discurso anterior – o de Vieira –, ainda caracterizado pelas idéias da filosofia e teologia neo-escolásticas.

Ribeirinhos da Amazônia, descendentes dos índios aldeados nas missões religiosas dos séculos XVII e XVIII. Foto recente.

Sem dúvida, Memorial, Visita e Regimento contribuíram, enquanto textos programáticos, para que os aldeamentos se tornassem instrumento eficaz de estruturação do espaço amazônico mediante uma extensa rede de núcleos habitacionais interligadas e, também, de integração das populações ameríndias à sociedade colonial através de um sistema de estrito controle sociocultural. Não obstante, no interior das missões surgiu um processo peculiar de etnogênese que, preservando a matriz indígena, agregou elementos ibero-barrocos recém-introduzidos às tradições ameríndias herdadas. A cultura popular da Amazônia – sobretudo o modo de viver das populações ribeirinhas ou caboclas – resulta destas dinâmicas criativas e constitui hoje um legado vivo do projeto jesuítico implantado no turbulento século XVII.

“LEVAR A LUZ DE NOSSA SANTA FÉ AOS SERTÕES DE MUITA GENTILIDADE”: FUNDAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA MISSÃO JESUÍTA NA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SÉCULO XVII) – Parte 02





Karl Heinz Arenz
Diogo Costa Silva



2. A expansão sob António Vieira

Como a trajetória de Figueira, também a missão de Vieira na Amazônia conheceria um fim trágico. Embora não sofresse naufrágio, nem uma morte violenta, este padre português sentiu, em 1661, a amargura de uma expulsão conturbada. Quando Vieira deixou Lisboa rumo ao Maranhão, em novembro de 1652, ele era o mais famoso dos inacianos até então enviados às terras amazônicas. Com efeito, uma vez passada a ameaça das invasões holandesas nas regiões costeiras da América Portuguesa, a Coroa mostrouse determinada a completar a integração da colônia do Maranhão e Grão-Pará ao conjunto de suas possessões atlânticas. Em vista disso, uma presença mais expressiva dos jesuítas foi considerada como fundamental. O primeiro grupo de religiosos que aportou em São Luís, no dia 23 de novembro de 1652, contou onze missionários, entre os quais os padres Francisco Velloso e João de Souto Maior26. Mas somente a partir do dia 16 de janeiro de 1653 – data da chegada do padre Antônio Vieira –, a Missão do Maranhão começou a ser efetivamente reativada. Conforme as competências inerentes à sua dupla titulação de superior e visitador, Vieira veio como representante plenipotenciário do prepósito geral da Companhia de Jesus. Além disso, o famoso padre português contou com o apreço geral por seus méritos adquiridos no serviço do Rei-Restaurador D. João IV, apesar de ter perdido influência na corte lisboeta27.

A vinda do padre Vieira provocou imediatamente uma agitação entre os moradores de São Luís, pois corriam boatos de que ele queria mudar as leis de 1647 e 1648 concernentes ao cativeiro lícito dos índios. Uma revolta aberta eclodiu com a publicação, no dia 19 de janeiro de 1653, de um alvará régio que declarou livres todos os índios cativos. Esta nova lei tinha sido retida pelo capitão-mor da cidade no intuito de vincular a chegada do novo superior à sensível questão da “liberdade dos índios”. Também os moradores de Belém se inquietaram quando souberam da presença do famoso inaciano na região. Para se prevenir, eles forçaram o padre João de Souto Maior a assinar, em 26 de janeiro de 1653 um documento que visou reduzir, de antemão, a margem de manobra do superior em matérias de lei. O referido papel impôs aos jesuítas, como única incumbência, o ensino da doutrina e determinou o seu afastamento da repartição anual da mão-de-obra indígena28. Vieira, mesmo tendo prometido ao rei de não interferir em assuntos indigenistas, começou a mobilizar, diante das reações veementes dos colonos, as autoridades do reino em favor de uma revisão do status jurídico dos índios29. Segundo Heinrich Böhmer, esta iniciativa desencadeou uma “guerra de trinta anos contra os colonos30”, sendo que as contendas mais impactantes deste conflito ocorreram em 1661, quando Vieira foi expulso31.

Ainda no ano de sua chegada, o superior partiu para uma excursão às proximidades de Gurupá e Cametá na foz dos rios Xingu e Tocantins. Não somente a grande quantidade de povos ameríndios, mas também os abusos cometidos pelos capitães no interior da colônia convenceram-no a reforçar a precária rede de aldeamentos existentes32. Sob sua orientação, estes centros catequéticos tornar-se-iam a espinha dorsal da Missão do Maranhão33. De fato, Vieira projetou um controle estrito dos inacianos sobre a população ameríndia para viabilizar uma conversão em condições viáveis e uma proteção eficaz contra possíveis interferências de colonos e militares34. Em vista disso, ele fundou ou refundou aldeamentos em lugares estratégicos e populosos, sobretudo na serra de Ibiapaba e na calha amazônica35.

Nesta nova conjuntura, Vieira considerou as competências concedidas pelo rei aos jesuítas, em 1652, insuficientes e ineficazes para poder agir em favor dos índios. Por isso, ele dirigiu-se, ainda em 1653, a D. João IV, propondo-lhe as seguintes medidas: afastamento dos capitães de assuntos indigenistas, presença obrigatória de um religioso em todas as expedições para o “sertão”, introdução do cargo do “procurador dos índios”, inventário anual da mão-de-obra indígena, regulamento das condições e dos prazos de trabalho e concentração dos índios em aldeamentos sob a administração exclusiva dos padres da Companhia de Jesus. Estas propostas, fixadas em uma carta do dia 6 de abril de 165436, foram promulgadas, sob forma de alvará régio, um ano mais tarde, em 9 de abril de 165537. Mediante esta lei, os aldeamentos tornaram-se, definitivamente, a peça-mestra da política vieiriana.

2.1. A rede dos aldeamentos

Para entender a importância dos aldeamentos jesuíticos na América Portuguesa, é imprescindível lembrar que os primeiros estabelecimentos foram erigidos nas imediações de Salvador da Bahia em 1552, três anos após a vinda dos jesuítas ao Estado do Brasil38. O padre Manuel de Nóbrega, fundador da Província do Brasil, salienta em uma carta de 8 de maio de 1558 a necessidade de concentrar os índios em aldeias à parte sob a direção exclusiva dos missionários com as seguintes metas:

A lei, que lhes [índios] hão-de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois têm muito algodão, ao menos despois [sic] de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para antre [sic] cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes Padres da Companhia para os doutrinarem39.

Estas aldeias, afastadas dos núcleos habitacionais dos colonos e autônomas em relação às autoridades, constituíram, pois, um ambiente propício para a sedentarização e a doutrinação, permitindo interferências diretas nos hábitos culturais dos indígenas. Nóbrega, escandalizado com a suposta “inconstância” dos índios convertidos, viu os aldemantos como “forjas da fé”, como ele mesmo elucida em seu Diálogo sobre a conversão do gentio de 1556, um documento-chave que reflete a concepção antropológica dos jesuítas nos séculos XVI e XVII40. Contudo, as missões do Estado do Brasil começaram a declinar a partir dos anos 1580, sobretudo em razão da resistência dos colonos e das querelas entre os próprios jesuítas. Nem sequer um compromisso, promulgado em 1596, conseguiu deter este processo41.

Diferente do Estado do Brasil, a extensa rede de aldemantos no Estado do Maranhão e Grão-Pará contribuiu significativamente a consolidar a nova colônia42. As primeiras missões na Amazônia remontam à presença efêmera de capuchinhos franceses na ilha do Maranhão entre 1612 e 161543. Uma década mais tarde, o capitão Simão Estácio da Silveira relata que aldeias indígenas, submissas no decorrer das primeiras expedições portuguesas pelos rios da região, foram confiadas a militares de mérito que tiveram a obrigação de cuidar da instalação e manutenção de missionários franciscanos nestes lugares. Os filhos espirituais de São Francisco – sob a direção do frei Cristóvão de Lisboa – estão, assim, no início dos primeiros aldeamentos no interior da Amazônia Portuguesa44. Da Silveira descreve, em 1624, os índios recém-aproximados como dóceis, vivendo em “aldeas de Gentio circunvezinhas, que fortalecem, acompanhão, & servem aos Portugueses de pescadores, caçadores, & de outros mesteres, & todas tem suas Igrejas muito fermosas, & dezejão muito ser Christãos, & agora vão frades capuchos [franciscanos] para os cathequizar, allem de que ja lá estão padres da Companhia [jesuítas]45”. Mas as freqüentes repartições da mão-de-obra indígena entre militares e religiosos e, sobretudo, o comportamento violento dos soldados fizeram – segundo da Silveira – que grupos inteiros de índios “fugirão dos nossos tratos, elles sabem o porque46”. Três décadas mais tarde, o padre Vieira denunciaria esta conivência inicial entre missionários e militares.

Uma das primeiras referências a aldeamentos administrados por padres da Companhia de Jesus na Amazônia encontra-se na correspondência do capitão-mor Alexandre de Moura, responsável pela investida portuguesa contra os franceses de São Luís em 1615. Este faz uma alusão aos métodos empregados pelos já mencionados jesuítas Manoel Gomes e Diogo Nunes que integraram sua campanha:

E, em todo o tempo que lá estive, se ocuparam os ditos Padres em dar notícia de nossa santa fé ao gentio, doutrinando-o, pregando e confessando, levando cruzes e Igrejas pelos povos [aldeias] dos Índios; cantando-lhes missas, ... Exercitavam-se mais nas obras de misericórdia, curando os doentes com muita caridade e enterrando os mortos, não perdoando aos trabalhos nem de dia nem de noite, havendo muitas e perigosas doenças no gentio47.

Tudo indica que os dois inacianos já conheciam o sistema dos aldeamentos, pois a concentração da população indígena em volta de uma praça, com um cruzeiro levantado em seu centro – marco de ordenamento e controle do espaço –, como também as práticas da doutrinação e “misericórdia” são as expressões mais evidentes de que eles aplicaram um método já usual de evangelização.



Missão de Nossa Senhora da Candelária no norte da atual Argentina. A planta das missões da Amazônia Portuguesa não foi muito diferente. Destacam-se a praça central e as casas enfileiradas em ordem retilínea. Ao lado da igreja encontram-se as oficinas, a escola, a residência dos padres e o abrigo das viúvas. Planta do século XVIII.

A maior expansão dos aldeamentos sob os cuidados dos jesuítas aconteceu no superiorato de Vieira que, segundo Dauril Alden, fundou, entre 1653 e 1661, aproximadamente cinqüenta missões48. Contudo, esta rápida difusão da rede missioneira não objetivou evitar a servidão dos índios em si; ao contrário, as aldeias constituíram, antes de tudo, um modo para regrá-la. O padre Vieira declara em 1662:

Não é minha intenção que não haja escravos; antes procurei nesta corte, como é notório e se pode ver da minha proposta, que se fizesse, como se fez, uma junta dos maiores letrados sobre este ponto, e se declarassem como se declararam por lei (que lá está registrada) [lei de 09/04/1655] as causas do cativeiro lícito. Mas porque nós queremos só os lícitos, e defendemos os ilícitos, por isso nos não querem naquela terra, e nos lançam fora dela49.

Portanto, o projeto jesuítico não foi, como sugere Darcy Ribeiro, uma “alternativa étnica”, capaz de engendrar um outro tipo de sociedade, paralela àquela criada por colonos e autoridades50. Os inacianos atuaram, antes de mais nada, dentro do quadro de privilégios que lhes concedeu o regime do padroado. Também a reformulação da legislação indígena por Vieira só foi possível por causa da margem de ação que este regime permitiu.

Portanto, um debate sobre a “liberdade dos índios” – no sentido moderno de uma emancipação ou promoção humana – era inexistente entre os próprios missionários. Além do mais, estes viviam muito dispersos e, muitas vezes, solitários, incapazes de administrar adequadamente as numerosas missões. No início dos anos 1670, o padre Pedro Luís Consalvi cuidou sozinho de toda a área do Baixo-Amazonas e do vale do Xingu que contou com dois grandes aldeamentos e inúmeros pequenos. A presença esporádica do padre nas missões só fez aumentar as fugas dos índios51. Na mesma época, foram confiados ao padre
Gaspar Misch “toda a nação dos Nheengaíbas e todo o rio das Amazonas”, sendo que “sozinho faz o que caberia a oito ou dez missionários eficientes realizar52.”

Por causa desta precariedade e dispersão das missões, Vieira escreveu dois regulamentos internos buscando adaptar o sistema dos aldeamentos aos desafios da realidade amazônica. Trata-se do Modo como se há de governar o gentio que há nas Aldeias do Maranhão e Pará – ou simplesmente Modo53 – e o Regulamento das Aldeias, mais conhecido como Visita54. O primeiro texto, sem data, constitui um complemento à lei de 9 de abril de 1655 que cedeu aos jesuítas a “dupla administração” (espiritual e temporal) dos aldeamentos55. Vinte cinco anos mais tarde, Vieira recomendou de novo o Modo, no contexto das negociações acerca da lei “da liberdade do gentio” de 1º de abril de 168056. O documento resume, de maneira concisa, o pensamento do autor, consistindo em uma apologia da tutela inaciana sobre os índios. O texto trata, primeiramente, da administração temporal dos aldeamentos, atribuindo uma co-responsabilidade aos chefes indígenas e, também, às autoridades coloniais concernidas: governador, capitães e câmaras; em seguida, fala da administração espiritual, salientando o monopólio dos padres jesuítas em questão de sacramentos e doutrina; mais adiante, refere-se às incursões, insistindo em uma análise criteriosa e crítica dos motivos; finalmente, o documento apresenta as disposições para a repartição da mão-de-obra, exigindo um respeito mínimo ante as necessidades humanas e as obrigações cristãs dos catecúmenos e neófitos indígenas.

O segundo texto, a já citada Visita, foi escrito – como a designação já o indica – após uma visitação completa da Missão realizada por Vieira no final dos anos 1650. Os cinqüenta parágrafos deste regulamento formam um conjunto de recomendações que se referem tanto a assuntos internos dos missionários quanto a questões externas que dizem respeito ao trato com os índios aldeados. O documento está subdividido em três partes. Os parágrafos de 1 a 13 insistem, sobretudo, na fiel observância religiosa por parte dos jesuítas, frisando, com base na tradição do fundador Inácio de Loyola, a execução diária da leitura espiritual, da oração pessoal e do exame de consciência, como também a realização dos retiros mensal e anual. De maneira implícita, estas prescrições iniciais da Visita levam em conta os inconvenientes dos constantes deslocamentos, como também a solidão experimentada pelos religiosos durante suas viagens às longínquas e dispersas “aldeias de visita” onde não havia uma equipe de missionários residentes. Por isso, o primeiro parágrafo ressalta a inextricabilidade entre os “exercícios espirituais” – método de meditação herdada do fundador para fortalecer a opção pessoal pelo serviço apostólico – e as práticas pastorais rotineiras:

Como os exercícios espirituais [meditações] são os que hão de dar eficácia aos exteriores [atividades pastorais], a primeira aplicação dos Religiosos da Companhia desta Missão, e sôbre que deve vigiar o cuidado dos Superiores, é que de tal maneira nos ocupemos nas coisas exteriores do serviço dos próximos, que, ajudando e ganhando as almas alheias, não padeçam detrimento as próprias57.

Os parágrafos de 14 a 37 dizem respeito à administração espiritual, pois regulam meticulosamente os horários da catequese e a rotina diária com base nas rubricas litúrgicas (sacramentos, domingos, festas) e tradições devocionais (confrarias, procissões, ladainhas, cantos), além de incumbir os missionários de registrar minuciosamente batismos e casamentos e divulgar o uso da “língua geral”. Já os parágrafos de 38 a 50 tratam da administração temporal, dando orientações para: o exercício da justiça comum em caso de pequenos delitos, a implicação dos chefes indígenas na gerência dos aldeamentos, o relacionamento com as autoridades coloniais e, sobretudo, a repartição e os trabalhos dos índios dentro e fora das missões.

A Visita denota claramente o duplo objetivo de Vieira: impressionar os indígenas por meio de um comportamento paternal – algo que se manifesta na permissão benevolente do baile aos sábados e na dedicação especial às crianças (aulas) e aos enfermos e moribundos (visitas)58 – e fortalecer a coesão entre os missionários dispersos pelo “sertão”. Por isso, o documento vieiriano foi três vezes (1668, 1680 e 1690) expressamente confirmado como regulamento obrigatório dos jesuítas na Amazônia59. De modo geral, pode-se afirmar que, no plano interno, a Missão do Maranhão se consolidou, no decorrer do século XVII, devido a esta constante readaptação da Visita de Vieira à realidade dos missionários e às práticas da missionação.

Além do regulamento interno, também o local escolhido e a função atribuída às missões deram endosso à sua rápida expansão. Ao fundar um aldeamento, os jesuítas optaram geralmente por um lugar estratégico na região da várzea, às margens de um rio navegável e próximo à floresta, condições ideais para a coleta de drogas do sertão, a produção agrícola extensiva e a troca dos produtos. No século XVII, a várzea – a faixa de terras férteis inundada anualmente em razão da enchente dos rios da bacia amazônica – constituiu ainda o habitat tradicional da grande maioria dos povos ameríndios60. Portanto, a concentração posterior desta população em aldeamentos situados neste mesmo ambiente, não requeria maiores adaptações. Tal fato explica porque os missionários conseguiram, com o saber-fazer de seus catecúmenos e neófitos, integrar as missões, dentro de um prazo relativamente curto, tanto nas dinâmicas do incipiente comércio intra-colonial (fornecendo produtos como farinha de mandioca, manteiga à base de ovos de tartaruga e peixe seco) como na rede de trocas atlântica (exportando diversas drogas do sertão, sobretudo cacau, cravo e açúcar)61.

Constituíram-se, assim, conforme sua função específica, quatro tipos de missões: primeiro, as fazendas destinadas à manutenção dos colégios; segundo, os aldeamentos de serviço real (sobretudo, as salinas na zona litorânea); terceiro, os aldeamentos “de repartição” cuja população masculina foi anualmente inventariada e repartida entre colonos, missionários e as próprias missões; quarto, os aldeamentos “de doutrina” tendo como objetivo exclusivo a catequização (geralmente de uma população recém-contatada)62. As fazendas, dotadas de um contingente de mão-de-obra não sujeita à repartição, foram de suma importância, não somente para as casas urbanas, mas também para a produção e o fornecimento de víveres e utensílios para as expedições missionárias e as residências religiosas no vasto interior. A maior parte delas se encontrou, evidentemente, nas proximidades de Belém e São Luís. Algumas se destacaram por terem engenhos de açúcar ou oficinas especializadas, sobretudo olarias para a produção de telhas, potes e vasilhas, como também marcenarias para a confecção de móveis e canoas63.

Quanto ao desenvolvimento demográfico dos ameríndios aldeados na Amazônia seiscentista, é impossível fornecer números exatos. A carta ânua de 1696 menciona onze mil índios cristianizados e administrados por trinta missionários64. Roberto Simonsen fala de cinqüenta mil indígenas vivendo em oitenta aldeamentos por volta de 168665. Darcy Ribeiro estipula que aproximadamente duzentos mil índios teriam sido “descidos” e um milhão – de um total de dois milhões – teriam morrido, somente no século XVII, em conseqüência de assaltos, deportações, trabalhos forçados, fomes e, sobretudo, epidemias66.

2.2. A tutela sobre os índios

Foi Vieira quem suscitou o debate acerca da “liberdade dos índios” na Amazônia Portuguesa. O padre amparou-se principalmente em textos jurídicos promulgados anteriormente para o Estado do Brasil. Tratou-se, primeiramente, da lei de 26 de julho de 1596, concernente à tutela dos jesuítas sobre os índios “descidos”; em seguida, da lei de 30 de julho de 1609, referente à liberdade dos índios interdizendo toda forma de sujeição; e, finalmente, da provisão de 10 de setembro de 1611, sobre as condições de cativeiro legal67. Além disso, Vieira recorreu a argumentos tirados dos escritos bíblicos e da tradição teológica como mostram os seus sermões proferidos em São Luís, sobretudo o Sermão da Primeira Dominga ou das Tentações, de 2 de março de 1653, e o Sermão de Santo Antônio ou dos Peixes, de 13 de junho de 165468. No entanto, o alvo imediato das primeiras críticas do jesuíta português na Amazônia foi uma legislação ainda recente de profundo caráter ambíguo. De fato, uma lei de 10 de novembro de 1647 e uma provisão de 9 de setembro de 1648, apesar de afirmarem a liberdade dos ameríndios, permitiram uma escravização camuflada mediante o recrutamento forçado de trabalhadores indígenas para serviços considerados imprescindíveis69.

Quando, finalmente, uma provisão régia de 17 de outubro de 1653 facilitou as “guerras justas” e, por conseguinte, os cativeiros legítimos por razões outras do que um ataque direto dos índios, Vieira protestou energicamente. De fato, a nova disposição legalizou ações punitivas contra os índios em caso de impedimento da pregação do evangelho, aliança com inimigos da Coroa, perturbação do comércio e da agricultura dos colonos, consumo de carne de súditos do rei, negação de tributos e desobediência à convocação para trabalhos públicos ou expedições militares70. Mas, a indignação de Vieira inflamou-se, sobretudo, contra duas cláusulas: uma que confiou a administração dos aldeamentos aos caciques e outra que favoreceu os colonos na repartição da mão-de-obra indígena71. A reação veemente e intransigente do famoso padre português diante destes agravos contra os índios – Maria Beatriz Nizza da Silva evoca uma “incapacidade de compromisso político72” – produziu uma escalada irreversível das tensões que atingiram seu auge com a primeira expulsão dos jesuítas em 1661.

Antes de aprofundar o engajamento de Vieira em favor de uma legislação que visou garantir aos índios uma liberdade sob a tutela exclusiva dos inacianos, é imprescindível assinalar três fatos. Primeiro, a colonização lusa na Amazônia aconteceu numa época em que as grandes discussões teológico-jurídicas sobre a “liberdade dos índios” já estavam encerradas. De fato, dominicanos, como os freis Antonio de Montesinos (1475-1540), Francisco de Vitória (1483-1512), Bartolomé de Las Casas (1484-1566) e Domingo de Soto (1494-1570), e jesuítas, como os padres Luis de Molina (1535-1600) e Francisco de Suárez (1548- 1617), tinham contribuído a formular, na Espanha quinhentista, um certo consenso teórico. Os clérigos mencionados eram ligados à chamada “escola da paz” da Universidade de Salamanca, uma corrente teológico-humanista baseada na filosofia jusnaturalista e muito crítica frente às práticas da colonização ibérica nas Américas73. Segundo, a servidão dos índios foi geralmente aceita como uma medida – mesmo uma necessidade – de integração dos mesmos à sociedade colonial. Até os teólogos e juristas de renome da época estavam favoráveis a este princípio. Terceiro, o conceito de liberdade individual e civil no sentido moderno era desconhecido. Ao invés disso, uma interpretação neo-escolástica do pensamento de Tomás de Aquino (1225-1274) constituiu a principal referência para os teólogos do seiscentos. O Aquinata defendera, com base na concepção antropológica de Aristóteles, a idéia da desigualdade natural dos homens, mas sem deduzir logo a existência de uma escravidão natural74. De fato, o princípio “desigual, mas não escravo” representou o recurso mais importante para amparar a argumentação do partido “próindígena” do século XVI. Mas, na medida em que a restrição contida nesta fórmula apresentou um avanço para a reinterpretação do pensamento escolástico, ela significou também uma complicação.

Exceto o jesuíta espanhol Luís de Molina, professor na Universidade de Évora, reflexões de ordem filosófico-teológica sobre a escravidão dos indígenas eram praticamente inexistentes em Portugal nos séculos XVI e XVII75. Mesmo Vieira revela na sua defesa da “liberdade dos índios”, antes de tudo, seu talento retórico, sem apresentar um pensamento original76. Na época, os jesuítas consideraram comumente os ameríndios como “almas racionais, mas transviadas, postas em corpos livres, mas carentes de resguardo e vigilância77”. Por isso, os religiosos consentiram em impor-lhes um regime de trabalho como medida pedagógica e obrigação para com a cristandade na qual acabaram de entrar. Ao adaptar o ideário aristotélico-tomista à realidade dos índios, buscou-se, sobretudo, um regulamento prático para a servidão dentro do quadro de uma liberdade vigiada ou protective liberty – nas palavras de Dauril Alden78.

Este raciocínio se encontra, em linguagem técnica, na obra De Indiarum Iure ou Politica Indiana da autoria do jurisconsulto espanhol Juan de Solórzano Pereyra (1575-1653), publicada em 164779. No entanto, consciente da dizimação dramática da população indígena na América do Sul, este ex-funcionário régio no Peru inverteu a argumentação, insistindo, de um lado, no princípio da soberania natural dos índios, e, no outro, na obrigação dos soberanos cristãos de proteger os indígenas e seus bens. A sua obra, um extenso comentário da legislação indigenista castelhana, tornou-se, na segunda metade do século XVII, uma referência no que tange aos direitos dos ameríndios na América Ibérica. Assim, as propostas que Vieira apresentou ao rei durante sua estadia na metrópole, em 1654 e 1655, contiveram duas das principais idéias de Solórzano: o regulamento minucioso das condições de trabalho e a primazia absoluta da Coroa em assuntos indigenistas. Destarte, o padre buscou restringir as competências das instâncias intermediárias, sobretudo das autoridades coloniais80. A estima de Vieira pela obra de Solórzano foi tanta que, ainda em 1680, ele prometeu enviar um exemplar aos confrades da Missão para fins de consulta em caso de litígio 81.

Antônio Vieira em postura de pregador aos índios e protetor dos negros em plena selva amazônica. Pintura do século XVIII.

Apesar de os reis lusitanos terem promulgado, desde os anos 1550, uma série de leis e alvarás referentes aos índios sob pretextos religiosos e políticos, os objetivos maiores revelaram ser de ordem econômica. As autoridades reinóis e coloniais aspiraram a tirar proveito da concentração compacta e produtiva da mão-de-obra indígena semi-livre das aldeias catequéticas. Por conseguinte, os textos jurídicos da época tiveram um caráter pára-legal, pois tenderam justificar, por meio de inúmeras disposições casuísticas e casos excepcionais, exatamente o contrário daquilo que pretendiam afirmar82. O objetivo principal da farta legislação indigenista dos séculos XVII e XVII não foi – como frisado acima – a liberdade dos índios, mas antes uma servidão regulamentada83. Apesar de moradores e missionários não discordarem neste ponto, as diversas leis nunca apresentaram uma solução consensual que satisfizesse ambas as partes.

Conforme este paradoxo, Vieira convenceu, durante sua estadia em Lisboa, em 1654 e 1655, a Mesa da Consciência – comissão deliberativa para assuntos jurídico-teológicos – a formular uma revisão das disposições anteriores. A nova lei, promulgada em 9 de abril de 1655, transferiu aos jesuítas a administração sobre todos os índios – aldeados, capturados ou moradores “do sertão” – além de conferir-lhes a supervisão das expedições militares e a realização dos “exames de cativeiro”84. Vieira conseguiu também que André Vidal de Negreiros, homem conhecido como pró-jesuítico, fosse nomeado governador85. Tendo sido excluídas das negociações, as câmaras municipais de São Luís e Belém – como também as outras ordens religiosas – começaram logo a acertar medidas contra as novas disposições e os privilégios dos inacianos. De fato, pouco depois, surgiu mais um entrave com uma ordem administrativa, promulgada em 14 de abril de 1655, que facilitou novamente guerras defensivas, alargando as competências do governador86. Apesar das polêmicas, a lei de 1655 foi, indubitavelmente, o instrumento principal da política monopolista e expansionista de Vieira, sendo que o estrito controle sobre a rede de aldeamentos constitui o seu cerne. Ainda um ano após a promulgação da lei, o superior defendeu com muita veemência o monopólio jesuítico:

A cultura [cultivo] de toda esta grande messe nos está encarregada por S. Majestade não sem grande sentimento e emulação de outras Religiões [ordens]; e nós a procuramos, e aceitamos toda, ... Na conformidade desta resolução, estamos hoje de posse de todas as Aldeias de Indios já cristãos ou confederados com os Portugueses. ... Estão estas Aldeas em distância de quatrocentos léguas por costa, em 8 Capitanias diferentes, e posto que as distâncias sejam tão grandes e nós tão poucos, foi força dividirmo-nos logo a tomar posse de tudo, porque havia Religiões que se queriam intrometer a entrar em algumas das ditas Aldeias, ...87

Além de consolidar a instituição das missões, Vieira conseguiu aumentar o efetivo dos missionários – entre os quais muitos coadjutores temporais (religiosos não clérigos) – e pôs-se a planejar a implantação das etapas-chave do sistema educativo jesuítico, sobretudo, as humanidades e o noviciado88. Para supervisionar a aplicação da nova lei, o superior visitou, entre 1656 e 1660, todos os aldeamentos de uma ponta da Missão à outra, isto é, da serra de Ibiapaba perto do Cerará até a ilha dos Tupinambaranas na foz do rio Madeira89. Mas, a morte do rei D. João IV, em 8 de novembro de 1656, privou Vieira repentinamente do apoio de seu principal protetor. Temendo a reação das câmaras municipais que, aproveitando o desaparecimento do monarca pró-jesuítico, começaram a interferir na metrópole, o superior implorou a regente D. Luísa de Gusmão, viúva do rei, para confirmar a lei de 1655 e os privilégios da Companhia de Jesus90. Uma provisão régia de 1658 deferiu sua solicitação91.

Finalmente, em meados de 1661 irrompeu uma insurreição dos colonos. Estes alegaram sentirem-se cada vez mais prejudicados por causa do acesso restrito à mão-de-obra nativa em razão do controle inaciano. Vieira e a maioria de seus confrades foram presos e expulsos. O novo rei D. Afonso VI – que acedera ao poder em junho de 166292 – reagiu aos acontecimentos somente em setembro de 1663, quando assinou duas provisões93. Estas traziam, de um lado, certo alívio, pois esclareceram a situação confusa; de outro lado, elas enfraqueceram sensivelmente a posição dos jesuítas. Embora a Companhia de Jesus fosse restituída no Estado do Maranhão e Grão-Pará, ela se viu obrigada a passar a administração temporal dos aldeamentos aos chefes indígenas. Além do mais, o povo foi agraciado com o perdão real, exceto os principais líderes da revolta, e o padre Vieira foi expressamente proibido de regressar. Lê-se no decreto:

Hey por bem declarar que assim os ditos Religiosos da Companhia como os de outra qualquer Religião não tenhão juridição [sic] algua temporal sobre o governo dos Indios e que o espiritual a tenhão também os mais Religiosos que assistem e rezidem naquelle Estado por ser justo que todos sejão obreiros da vinha do Senhor... ..., hey outro sim por bem que se guarde a ultima Ley do Anno de [1]655 e o regimento dos Governadores, e que os ditos religiosos da Campanhia possão continuar naquella missão na forma que fica referido, excepto o P.e Antonio Vieira por não convir a meu serviço que torne aquelle Estado94.

Mesmo exilado na metrópole, Vieira continuou a acompanhar com interesse a sorte da Missão do Maranhão95. Quanto à sua presença na Amazônia entre 1653 e 1661, ela teve um impacto fundamental para o desenvolvimento posterior tanto da Missão como do Estado pelas seguintes razões: primeiro, a obtenção de uma legislação que conseguiu preservar a idéia da liberdade, mesmo condicionada pela tutela e o confinamento obrigatório; segundo, a implantação de uma rede estratégica de mais de cinqüenta aldeamentos, concentrando-a no vale amazônico enquanto novo foco sócio-econômico; terceiro, a redação da supracitada Visita como regulamento pragmático interno que reconciliou a disciplina religiosa dos missionários com a administração dos índios aldeados. Quanto às querelas acerca da “liberdade dos índios” provocadas por Vieira, elas impregnaram, por muito tempo, a consciência coletiva de seus irmãos de batina da convicção de que eles constituiriam os tutores legítimos dos ameríndios no Maranhão e Grão-Pará.