Herança Jesuítica
terça-feira, 25 de setembro de 2012
Parte: 03 Resumos Das Falas Da 1ª Mesa Redonda
AS MISSÕES
JESUÍTICAS E FAZENDAS NO ENTORNO DE BELÉM: AS MISSÕES DE MORTIGURA E SUMAÚMA
Frederik Luizi
Andrade de Matos (mestrando PPHIST/UFPA)
O
trabalho catequético na região amazônica durante os séculos XVII e XVIII foi
conduzido pelos missionários de diversas ordens religiosas: franciscanos
(divididos em suas três Províncias: Santo Antonio, Piedade e Conceição),
mercedários, carmelitas e jesuítas, se empenharam na tarefa de expandir a fé
católica e o reino português nos chamados “sertões” amazônicos. Mas entre todas
as ordens, os jesuítas se destacaram nesse trabalho missionário, tanto pela sua
organização para atuarem nas diversas aldeias administradas por seus padres,
como também para a definição de uma chamada política indigenista para o Estado do
Maranhão e Grão-Pará.
Passaram pelo
Maranhão durante o período em que os jesuítas permaneceram na região, uma
grande quantidade de padres que marcaram seus nomes na história da Amazônia –
seja a partir de seus feitos; seus escritos, cartas e crônicas; ou pela sua
atuação no tocante a questão indígena, principalmente com relação ao acesso a
essa mão-de-obra buscada pelos colonos – entre eles destacam-se os padres Luis
Figueira, Antonio Vieira, João Felipe Bettendorff e João Daniel. Esses homens
contribuíram para a formatação do trabalho missionário jesuítico na Amazônia,
porém, tanto estes como os outros inacianos sofreram com as críticas e
acusações formuladas pelos colonos.
Buscaremos neste
presente trabalho então situarmos neste contexto de conformação da Companhia de
Jesus no Maranhão mostrar como se deu a instalação de duas aldeias jesuíticas
próximas a Belém, Mortigura e Sumaúma, durante o século XVII, que depois foram
transformadas em vilas com os nomes de Barcarena e Abaetetuba. Tentaremos
demonstrar como era o cotidiano desses lugares, a partir de relatos de um dos
mais famosos cronistas jesuítas, a crônica do padre João Felipe Bettendorff,
que durante algum tempo trabalhou como missionário na aldeia de Mortigura, e
também da documentação produzida nesse período, principalmente no que se
referia ao trato e convívio com o indígena.
A partir do
exemplo dessas aldeias podemos avaliar a produção de um patrimônio material
vinculado aos inacianos, principalmente no que se referiam a residências dos
padres, as igrejas, ornamentos religiosos, e principalmente fazendas com
produção de uma agricultura sustentável, organizada pelos padres. Esse
patrimônio também se vinculava ao Colégio de Santo Alexandre em Belém, já que
durante algum tempo a aldeia de Mortigura esteve ligada diretamente ao Colégio.
Cabe destacar como os missionários administravam suas fazendas, e o modo de
produção desenvolvido nessas localidades, gerando uma produção agrícola e
lucros, acarretando críticas por parte dos colonos e autoridades régias por
conta desse possível comércio e lucro efetuado pelos religiosos, durante os
anos em que os inacianos atuaram no Estado do Maranhão e Grão-Pará.
Parte: 02 Resumos Das Falas Da 1ª Mesa Redonda
AS
ATIVIDADES ECONÔMICAS DA COMPANHIA DE JESUS NA AMAZÔNIA COLONIAL PORTUGUESA
Raimundo Moreira das Neves Neto (doutorando PPHIST/UFPA)
Durante a época
moderna, a Companhia de Jesus sempre teve em mente a ideia de que ela não
poderia se tornar dependente das verbas do padroado régio para financiar as
suas missões, como a Missão do Maranhão e Grão Pará. Assim, ela não tardou a
conquistar um vasto patrimônio fundiário por diversas vias, tais quais: compras
diretas, trocas, arrematações e pedidos de sesmarias. De tal feita, suas
fazendas geravam um considerável lucro a partir de atividades de criação de
animais, cultivo de diversos gêneros (café, cana de açúcar etc.), expedições às
drogas do sertão (cravo, cacau, salsa etc.) e produção de canoas. A produção e
comércio de tais gêneros ainda eram favorecidos por um conjunto de benefícios
que o monarca português concedia aos padres, como a isenção de impostos
alfandegários de tudo o que eles comercializassem. Por outro turno, para além
dos benefícios reais, a própria Companhia de Jesus não se furtava a agraciar
com cartas de irmandade aos colonos de certa proeminência financeira, o que é
significativo quando percebemos que esses mesmos moradores legavam as suas
propriedades aos colégios jesuíticos.
A gerência dos
rendimentos das propriedades jesuíticas não representava matéria embaraçosa aos
padres, pois a administração/contabilidade inaciana contava com um alto grau de
aperfeiçoamento, fazendo frente até mesmo a administração da fazenda real.
Nesse sentido, merece destaque as figuras dos padres reitores e procuradores. Ambos trabalhavam intensamente na conquista/maximização de
bens e na resolução de pleitos que envolviam o patrimônio material jesuítico.
Pedidos de sesmarias às autoridades, recebimento de doações por parte de
devotos, solicitação de côngrua (ou aumento da mesma), compra de terras,
representação às diversas instâncias quando de litígios que envolvessem uma
dada propriedade ou um dado privilégio e, é claro, a administração das
fazendas: eis alguns trabalhos que, no Estado Maranhão e Grão Pará, eram
exercidos por reitores e procuradores.
Toda essa estrutura administrativa era centralizada na figura dos
colégios inacianos.
Sabidamente, somente os colégios e casas de formação
da Companhia de Jesus possuíam bens próprios (como fazendas e imóveis urbanos)
dos quais se sustentavam. Tal especificidade dos colégios e casas de formação
em deter o patrimônio material da Ordem foi uma determinação do próprio Santo
Inácio de Loyola, fundador da Companhia, a partir das Constituições Jesuíticas,
com o intuito de manter a pobreza dos religiosos. Em outras palavras, quem
possuía os bens materiais da Ordem não eram os padres, mas sim os colégios
jesuíticos. Como podemos perceber, o colégio jesuítico não tinha uma função
meramente educacional, mas, sobretudo, de centro gerenciador de todo o
patrimônio material da Ordem, pois todas as fazendas e demais propriedades que
a Companhia de Jesus conquistasse estavam atreladas a ele. Singular, nesse
sentido, é a própria arquitetura de tais prédios.
As construções jesuíticas seguiam o mesmo estilo aplicado
na ereção de conventos e mosteiros – disposição em quadra ou retângulo – de
modo a formar um ou mais pátios interiores. O pátio teria como objetivo o
descanso/reflexão dos religiosos, daí eles serem rodeados de galerias que
permitiam a sombra. Os pátios jesuíticos, todavia, não possuíam galerias, e
faziam fronteira diretamente com os muros da construção (igreja ou colégio),
permitindo uma maior iluminação solar. Tal especificidade do pátio jesuítico
estava intimamente ligada à sua função dentro do colégio: circulação ou meio
termo entre reclusão e a vida ativa da Companhia. Nesse sentido, junto ao pátio
do Colégio de Santo Alexandre (Belém do Pará), eram erigidas construções
menores para recolher os muitos gêneros que vinham das missões do interior do
Pará, como as drogas do sertão. O pátio do colégio, portanto, servia de armazém
para tais produtos que eram enviados para outras partes da América Portuguesa,
como o Estado do Brasil, e até mesmo para o Reino.
Parte: 01 Resumos Das Falas Da 1ª Mesa Redonda
ALDEAMENTOS E
COLÉGIOS: IMPLANTAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS NA AMAZÔNIA
PORTUGUESA (SÉCULO XVII)
Karl Heinz
Arenz, UFPA
Durante todo o século
XVII, a Amazônia portuguesa constituiu uma fronteira enquanto “espaço granular,
descontínuo, sem estruturas fixas, permeado por vãos”. A viabilidade da possessão
lusa na bacia amazônica dependeu da rápida integração dos povos indígenas ao projeto
colonial, que prescrevia a catequização dos mesmos. No intuito de colaborar
nesta tarefa, os jesuítas tentaram diversas vezes (1607, 1615, 1622, 1639,
1653) fixar-se no então Estado do Maranhão e Grão-Pará.
A sua implantação, que
revelou ser um processo longo e complexo, foi impregnada pelas ideias e as
ações de três personagens: Luís Figueira (1574-1643), António Vieira
(1608-1697) – ambos de origem portuguesa – e o luxemburguês João Felipe
Bettendorff (1625-1698). Cada um destes padres contribuiu a (re)fundar e
consolidar a missão da Companhia de Jesus num contexto marcado por crises
socioeconômicas e incertezas político-jurídicas. Luís Figueira foi o primeiro a
apontar o grande potencial da região amazônica, tanto em vista da conversão
promissora do grande contingente de povos indígenas quanto em razão da
exploração das riquezas naturais, tornando-se o fundador oficial da Missão em
1639; Antônio Vieira retomou, depois da morte trágica de Figueira (1643), o
projeto missionário, obtendo, em 1655, a tutela exclusiva dos inacianos sobre
os índios e expandindo a rede de aldeamentos; João Felipe Bettendorff
consolidou a Missão após o levante dos colonos e a expulsão de Vieira (1661),
buscando um compromisso viável para moradores e religiosos.
Os aldeamentos ocuparam
um lugar primordial no projeto jesuítico. Destinados a fomentar a conversão dos
índios ao cristianismo, estes estabelecimentos catequéticos revelaram ser,
desde a sua introdução nos primórdios da colonização, núcleos habitacionais de
grande importância estratégica, demográfica e econômica. De fato, as missões
forneceram uma mão de obra servil – durante décadas a única disponível – cujos
conhecimentos das florestas e várzeas eram imprescindíveis para a coleta das
drogas do sertão e a implementação de uma agricultura extensiva. Por isso,
grande parte da legislação colonial concernente ao Estado do Maranhão e
Graõ-Pará tratou do status jurídico e das condições de trabalho das populações
aldeadas sob o controle vigilante dos missionários.
Os inacianos provaram
ser muito zelosos em seus intentos de negociar, em diversas ocasiões (1655,
1680 e 1686), um enquadramento legal para as missões que impedisse qualquer
interferência direta por parte das autoridades e dos colonos. A expressiva
autonomia contribuiu a engendrar, no seio dos aldeamentos, um complexo sistema
de relações interculturais entre índios e missionários que instaurou um “jogo
de comunicação” de dimensão convergente. Ambos os agentes sociais foram
forçados a (re-)significar certos padrões de vida – tanto os seus como os dos
outros –, estabelecendo códigos culturais compartilhados.
De fato, a historiografia
referente às missões partiu durante muito tempo e de forma quase exclusiva do
binário antagônico “vencedores-vencidos”, julgando, de um a lado, os
missionários ou como impostores coloniais ou heróis civilizadores, e, de outro
lado, relegando os índios a um papel ou de vítimas passivas ou de resistentes
combativos. Na realidade, o quotidiano nestas aldeias catequéticas – lugar de intenso
convívio social devido a uma crescente convergência ritual-simbólica –
propiciou o surgimento de um modo de vida compartilhado entre missionários e
índios, além dos dogmas e regulamentos oficialmente estabelecidos. Assim, a
organização clânica, a produção e a propriedade comunitárias, o saber
terapêutico, certas danças rituais e a “língua geral” – o nheengatu – tornaram-se elementos culturais típicos no interior das
missões inacianas; presentes, aliás, até hoje no modo de viver dos ribeirinhos
ou caboclos da Amazônia. Os religiosos favoreceram assim, já no século XVII,
uma homogeneização cultural de matriz indígena para lidar melhor com a
multiplicidade das culturas ameríndias.
Como no Estado do
Brasil – mais ao sul –, os padres basearam-se na macrocultura tupi, embora
muitos povos indígenas da Amazônia não pertencessem a este universo
étnico-linguístico. Foram os Tupinambás, estabelecidos ao longo o litoral
atlântico entre o Pará e o Maranhão, que serviram de referência cultural para
os missionários. Os dois
colégios da Missão do Maranhão, em São Luís e Belém, tiveram, ao longo do
século XVII, um papel fundamental enquanto centros de administração, reflexão, oração,
formação, repouso, abastecimento e comércio. Assim, a rede dos aldeamentos foi
diretamente gerenciada a partir destas casas centrais que marcam até hoje a
silueta do centro histórico das duas cidades.
Convite
Projeto de Extensão
“A Herança Jesuítica Revisitada: as
múltiplas faces do patrimônio histórico como instrumentalização pedagógica e
exercício de cidadania”
CONVIDA
Como parte dos preparativos para a comemoração da efeméride dos
400 anos da Cidade de Belém do Pará, a equipe do projeto de extensão A Herança Jesuítica Revisitada convida
a comunidade acadêmica para participar da primeira mesa redonda intitulada “A presença jesuítica na Amazônia: projeto
missionário e base econômica”, que ocorrerá no Centro de Memória da
Amazônia, dia 27 de setembro, das 9:00 às 11:30 horas. A mesa será composta pelos
palestrantes Karl Arenz (FAHIS, UFPA), Raimundo Neves Neto (doutorando PPHIST-UFPA)
e Frederik Matos (mestrando PPHIST-UFPA).
Será emitido
certificado de três horas aos participantes da mesa redonda.
quarta-feira, 18 de julho de 2012
“LEVAR A LUZ DE NOSSA SANTA FÉ AOS SERTÕES DE MUITA GENTILIDADE”: FUNDAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA MISSÃO JESUÍTA NA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SÉCULO XVII) – Parte 03
Karl
Heinz Arenz
Diogo
Costa Silva
3. A
consolidação sob João Felipe Bettendorff
O
padre João Felipe Bettendorff pode ser associado a uma das fases mais difíceis
do “século jesuíta” na Amazônia Portuguesa. De fato, a região viveu entre 1661
a 1693 uma grande instabilidade econômica e incerteza jurídica. Além do padre
luxemburguês, destacaram-se neste período outros jesuítas não-portugueses,
sobretudo os italianos João Maria Gorzoni e Pedro Luís Consalvi. Quanto à
trajetória de Bettendorff, ele nasceu em 1625, em Lintgen, no então Ducado de
Luxemburgo, e entrou – após os estudos das humanidades, da filosofia e do
direito romano – no noviciado da Companhia de Jesus na Província Galo-Belga96. Logo após a sua ordenação sacerdotal, em
1659, ele viajou, via Portugal, para a Missão do Maranhão a qual ele tinha sido
destinado. No dia 20 de janeiro de 1661, ele aportou, junto com seu compatriota
Gaspar Misch, em São Luís. Logo em seguida, os dois foram enviados pelo padre
Vieira ao vale do Amazonas. Bettendorff se instalou como primeiro missionário
residente na confluência do Tapajós com o Amazonas (hoje Santarém); Misch ficou
nas cercanias do fortim de Gurupá97.
A
historiografia conhece Bettendorff principalmente como autor da Crônica dos
Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Sua importância como
cronista ofusca o fato de que o padre luxemburguês deteve, entre 1662 e 1693,
quase ininterruptamente, todos os cargos-chave da Missão: reitor de colégio,
superior e procurador. Neste contexto, a expulsão repentina de Vieira, em 1661,
e a rápida ascensão de Bettendorff no seio do grupo dos missionários que
conseguiram escapar do exílio ou voltar logo, levantam a questão quanto à
relação entre ambos, sobretudo no que se refere à continuação do legado
administrativo-jurídico de Vieira. Fernando Amado Aymoré e José Vaz de Carvalho
tendem a ver em Bettendorff um “traidor” dos ideais de seu predecessor; Aymoré
o denomina até “anti-Vieira”.98 No mesmo
sentido, Carlos de Araújo Moreira Neto, Eduardo Hoornaert e Hugo Fragoso opõem
Vieira como articulador de uma suposta “fase profética” a Bettendorff como
mentor de um período de caráter “empresarial”.99
Já Maria Liberman qualifica o padre luxemburguês como “fiel continuador de
Vieira”.100 Sem polemizar estas
posições categóricas, tem que se levar em conta que a conjuntura
sócio-econômica dos anos 1660 e 1670 não permitiu ao novo superior uma simples
continuação da política monopolista e expansionista do padre Antônio Vieira.
Bettendorff
chegou à Missão alguns meses antes do levante de 1661. Devido a sua origem
centroeuropéia e seu longo percurso formativo (1635-1659), o padre luxemburguês
demonstrou ter uma concepção diferente quanto ao projeto da Missão. Primeiro,
ele favoreceu claramente uma aproximação com os colonos pelo viés das
atividades pastorais e do acompanhamento espiritual, promovendo confrarias populares
e agraciando benfeitores e devotos com o título de “irmão da Companhia”.
Segundo, ele deu às questões indigenistas uma dimensão jurídico-técnica, pois
sua argumentação não endossou mais o pressuposto vieiriano de cunho
personalista (o índio tutelado), mas antes frisou o aspecto institucional (o aldeamento
autônomo). Terceiro, diante das tensões no interior da própria Missão –
dissensões entre os missionários de origens e mentalidades diferentes e falta
de apoio material por parte das Províncias de Portugal e do Brasil –
Bettendorff buscou uniformizar a vida comunitária e o discurso catequético dos missionários
e favoreceu os contatos com a Província lusa101.
Assim, o proceder pragmático do padre luxemburguês contribuiu
significativamente à consolidação da Missão do Maranhão entre a expulsão de Vieira,
em 1661, e a divisão dos aldeamentos entre as ordens religiosas atuantes na
Amazônia, em 1693.
3.1. Os anos de
incerteza (1661-1684)
Em
1662, Bettendorff foi nomeado superior provisório em Belém, mas já no ano
seguinte ele recebeu a incumbência de gerenciar a casa central da Missão em São
Luís. Nas duas casas – que se tornariam colégios em 1670 – o padre luxemburguês
reorganizou a base econômica, reativando fazendas e erguendo oficinas, e
promoveu a atuação pastoral entre os moradores por meio de pregações e confissões
regulares102. Mesmo assim,
Bettendorff apresentou, em 1665, no seu primeiro relatório ao Superior Geral, um
quadro bastante negativo da Missão103.
Trata-se de um primeiro balanço de sua presença quadrienal na Amazônia. Ele
lamenta, sobretudo, o agravamento da exploração infligida pelos moradores – com
a conivência do governador Rui Vaz de Siqueira – aos índios desde o fim do
monopólio jesuítico (1663) e a crescente mortalidade em razão das epidemias,
dos trabalhos pesados e da falta de alimentos. Os abusos denunciados por
Bettendorff foram confirmados pelos padres Pedro Luís Consalvi e João Maria
Gorzoni. O primeiro fala, em 1663, de tropas ilegais que partiram abertamente
para capturar índios com o simples intuito de farli schiavi dei bianchi (“fazê-los
escravos dos brancos”). O segundo aponta, em 1665, os excessos de trabalho aos
quais os moradores forçaram os índios sem pagar a remuneração devida104.
A
missiva de Bettendorff esconde tampouco os “choques culturais” que ele
experimentou frente ao universo ameríndio. Assim, ele chama os índios de “pouco
interessados na doutrina e nas coisas sagradas, negligentes com respeito a Deus
e à salvação, estúpidos, imbecis, brutos e quase que com uma tendência inata
para a inércia e a imoralidade105”. O
luxemburguês exprime a sua frustração por meio do lugar-comum da suposta
obstinação ou indiferença dos indígenas frente à catequização que, aliás,
perpassa as cartas e crônicas dos séculos XVII e XVIII106. Outra preocupação que Bettendorff articula,
refere-se à infra-estrutura precária da Missão e à falta de zelo pastoral e de
formação intelectual dos próprios missionários. Segundo ele, igrejas, capelas e
residências no interior se encontravam num estado deplorável, as confrarias nas
cidades revelavam pouco fervor e um curso complementar de teologia moral para
os padres mais jovens deixava muito a desejar107.
Bettendorff repete este quadro sinistro em outras cartas à cúria generalícia –
geralmente com o intuito de conseguir o envio de mais missionários e subsídios108.
A
penúria da Missão estava ligada à crise econômica geral, que afligiu todo o
mundo colonial na segunda metade do século XVII. Gravemente atingido, o Império
Português tentou dinamizar a rede comercial no Atlântico109. No intento de integrar melhor a colônia
amazônica, o príncipe-regente D. Pedro II enviou, no dia 19 de setembro de
1676, uma carta régia às câmaras de São Luís e Belém. Esta missiva instaurou o
“estanco do ferro”, isto é, a importação e comercialização de ferro, aço e
ferramentas sob o controle da fazenda real. Ao mesmo tempo, ela definiu a
taxação das drogas do sertão destinadas à exportação110. O príncipe incentivou, neste contexto, a
coleta e o cultivo da baunilha e do cacau, dois produtos muito apreciados na
Europa naquele momento111.
Contudo,
a política de integração da Coroa não foi somente de cunho econômico. Ela
previu também a ereção de uma diocese. O motivo principal para tal propósito
foi mais político do que pastoral. De fato, um bispo estreitamente ligado à
Coroa tenderia a apoiar incondicionalmente as iniciativas da metrópole e
constituiria um contrapeso frente à expressiva influência dos religiosos, razão
do constante descontentamento dos colonos. O prelado seria, por isso, incluído
no procedimento da repartição anual da mão-de-obra indígena, aumentando a
influência da Coroa nesta prática de suma relevância econômica112. A diocese de São Luís foi fundada em 1677,
sendo seu primeiro bispo D. Gregório dos Anjos113.
O novo prelado exigiu logo que os jesuítas lhe obedecessem enquanto autoridade
eclesiástica máxima da colônia, recusando-se a conferir a certos padres a
autorização para ouvirem confissões, mesmo nas aldeias sob os cuidados
pastorais da Companhia de Jesus114.
Numa época que viu o sacramento da penitência como um meio essencial para a
evangelização, esta medida equivalia a uma afronta sem igual contra os
missionários. Finalmente, encontrou-se um compromisso graças a uma mediação do
padre Vieira: os jesuítas cederiam ao bispo no que diz respeito às rubricas
canônicas e litúrgicas, mas não permitiriam sua interferência na administração
espiritual das missões por se tratar de um direito garantido pelo rei115.
Na
mesma época, a metrópole deu continuidade às reformas. Duas leis, inspiradas
pelo padre Vieira e promulgadas em 1º de abril de 1680, ampliaram as condições
de integração da colônia amazônica à rede comercial do Atlântico português. A
primeira anunciou três medidas importantes: a introdução de “negros da Costa de
Guiné” para “a cultura de searas [plantações agrícolas] e novas drogas
[produtos florestais]”; a continuação das repartições anuais dos índios
aldeados; enfim, o monopólio jesuítico sobre os descimentos de índios do
“sertão” e, também, sobre a fundação de novos aldeamentos116. A segunda lei declarou os índios como
doravante livres de toda forma de cativeiro e servidão. Porém, a nova liberdade
referiu-se, na prática, à escolha dos serviços, sendo que o confinamento em
“aldeas de Indios livres e catholicos” continuou sendo obrigatório117.
Um padre jesuíta
no Brasil. Chapéu e bastão apontam para a itinerância dos missionários. Pintura
do século XVIII.
Todas
estas medidas visaram formar uma mão-de-obra dócil e adaptada às novas
iniciativas econômicas. O nexo com as provisões anteriores sobre a importação
de ferro, a taxação das drogas do sertão e a flexibilização da repartição dos
índios é evidente. Além disso, a introdução de escravos africanos faria com que
os aldeamentos fossem – conforme o desejo de Vieira – menos visados como
“reservatórios” de mão-de-obra. A fundação da Companhia Geral do Comércio do
Estado do Maranhão e Grão-Pará, em 12 de setembro de 1682, completou as
medidas promulgadas anteriormente; haja vista que este empreendimento foi
projetado para viabilizar o intercâmbio transatlântico com base na importação
de escravos africanos e na exportação dos produtos florestais e agrícolas118. Para garantir os investimentos necessários
na nova companhia, as concessões comerciais foram conferidas em forma de
monopólio a mercadores lisboetas119.
Tentou-se, assim, estabelecer no Atlântico Sul – ao lado da já existente rota
Brasil- Angola – um segundo eixo de comércio rentável, ligando os dois maiores
portos da Amazônia ao entreposto de Cacheu na costa da Guiné.
Mas
este complexo “pacote sócio-econômico”, introduzido entre 1676 e 1682, ao invés
de inspirar confiança aos colonos, gerou um clima de revolta, sobretudo na
cidade de São Luís. De fato, os objetivos metropolitanos revelaram ser pouco
condizentes com a precariedade da principal cidade da colônia e com a situação
dos moradores que possuíam fazendas e engenhos de médio porte e controlavam o
modesto comércio local120. Laura de
Mello e Souza fala de “dois projetos inflexíveis” cujo afrontamento criaria uma
situação nova121. De fato, em
fevereiro de 1684, os moradores mais frustrados decidiram rebelar-se sob a liderança
dos irmãos Manuel e Tomás Beckman e Jorge Sampaio, integrantes da camada
abastada que mais sentiu os impactos da crise122.
Apesar de semelhanças com o levante de 1661, esta segunda insurreição mostrou
ser mais complexa por três razões123.
Primeiro, os colonos viram o seu acesso à mão-de-obra nativa restrito pela lei
de 1680, pois havia menos repartições. Segundo, os escravos recém-introduzidos
da África estavam fora de seu alcance devido ao preço elevado. Terceiro, sua
implicação – já mínima – no intercâmbio com a metrópole foi “sufocada” em razão
do caráter monopolista da companhia de comércio.
Na
noite do dia 23 de fevereiro, os revoltosos conseguiram ocupar a cidade. Em
frente ao colégio jesuítico, a multidão agitada exigiu que os inacianos
renunciassem à sua participação na administração dos aldeamentos e na
repartição dos índios. Os jesuítas rebateram estas reivindicações, alegando que
elas seriam contrárias à legislação em vigor cuja modificação caberia
unicamente ao rei. Mas, excitados e incapazes de analisar o caráter
multifatorial de sua situação, os moradores acabaram projetando toda responsabilidade
por suas mazelas na Companhia de Jesus. Como os inacianos não cederam, eles foram
postos em prisão domiciliar dentro do próprio colégio. No dia 19 de março, a
Junta dos Três Estados124 – órgão
executivo dos revoltosos – decretou sua expulsão sob o pretexto de terem
abusado de seus privilégios e indevidamente acumulado riquezas125. Uma semana depois, no dia 26, foi executada
a deportação126.
Juntamente
com outros missionários expulsos, Bettendorff alcançou Recife em 20 de maio de
1684. Após uma primeira deliberação com os confrades da Província do Brasil e
uma audiência com o governador pernambucano, os padres João Felipe Bettendorff
e Pedro Pedrosa foram enviados até Bahia para consultar o Superior Provincial
Alexandre Gusmão. Estando este ausente, os dois emissários conferenciaram com o
padre Vieira que, desde 1681, estava de volta ao Brasil. Ficou decidido que
Bettendorff viajaria imediatamente à metrópole para defender como procurador ad
hoc a causa da Missão. No dia 23 de outubro de 1684, o padre luxemburguês
aportou, em companhia do irmão Marcos Vieira, em Lisboa 127.
3.2. As medidas
de reorganização (1685-1693)
Apesar
das dúvidas de certos padres quanto à capacidade diplomática de seu confrade luxemburguês128, Bettendorff conseguiu logo introduzir-se na
corte. Segundo seu próprio relato, o rei D. Pedro II mostrou-se interessado e
indicou-lhe como interlocutor o secretário régio Roque Monteiro Paim, homem
favorável à restituição dos jesuítas129.
Bettendorff apresentou ao monarca um memorando de doze propostas que serviriam
de base para as negociações posteriores (1684-1686).130 O documento prevê uma revisão completa das
relações entre jesuítas, moradores e autoridades coloniais. Mas, ao invés de
pedir meramente uma volta imediata à Amazônia, reivindicou-se: a restituição da
“dupla administração” dos aldeamentos (perdida em 1663, restituída em 1680 e
novamente suprimida em 1684); a reestruturação externa e interna dos
aldeamentos (numericamente menos, mas demograficamente maiores, com uma equipe
permanente de missionários residentes e acesso limitado para militares e colonos);
um controle mais eficaz sobre expedições e repartições (para evitar abusos);
enfim, a garantia de um apoio financeiro por parte do rei (mediante envio
regular de subsídios). O objetivo principal destas propostas foi, antes de tudo,
a obtenção de condições favoráveis para um recomeço das atividades missionárias
sem ambigüidades, ou seja, um modus vivendi aceitável para todos.
Diante
da gravidade da situação, foi constituída uma junta especial para tratar da
contenda. Os seus integrantes eram conselheiros régios e altos funcionários.
Bettendorff não fez parte, mas exerceu uma influência significativa por meio de
seu contato com Roque Monteiro Paim131.
Além disso, ele contou com o apoio de confrades que atuaram na corte e gozou da
benevolência da nova rainha de origem alemã, D. Maria Sofia. Se a nomeação do
militar experiente Gomes Freire de Andrade ao cargo de governador do Maranhão,
ainda em 1684, parecia significar um primeiro sucesso para a causa jesuítica, a
aparição dos procuradores dos moradores, Tomás Beckman e Eugênio Ribeiro, foi
motivo de inquietação; mas ambos foram logo presos e desterrados132. Paradoxalmente, a chegada inesperada do
Superior da Missão Jódoco Perret significou uma ameaça maior. Homem de caráter
impulsivo, o padre suíço mostrou-se favorável à supressão da Missão e defendeu
sua posição com veemência133.
Bettendorff resolveu o incidente ao manter Perret afastado da cidade de Lisboa134.
Quando
foi decretada a restituição do colégio de São Luís, em meados de 1685, o bom
andamento dos debates parecia garantido e o fim das conferências próximo135. No entanto, várias petições da câmara de
Belém, o envio de um procurador hábil – o antigo capitão-mor do Grão-Pará
Manoel Guedes Aranha –, e a crescente influência do governador Gomes Freire de
Andrade ampliaram o escopo das negociações. A repartição tripartite anual da
mão-de-obra tornou-se o ponto mais polêmico, haja vista que o número de trabalhadores
disponíveis em certas “aldeias de repartição” era demasiado pequeno para uma
divisão eficaz e os prazos de ausência permitida não correspondiam às condições
dos serviços de regime sazonal (coleta das drogas do sertão). Os jesuítas
cederam, enfim, no que tange à repartição que passou a ser bipartite – entre os
moradores e os aldeamentos – e aos períodos de trabalho fora das missões. Em seguida,
quando foi abordada a questão da administração temporal, os moradores
insistiram na sua completa abolição, alegando que os inacianos deveriam
dedicar-se exclusivamente à evangelização. Em resposta, Bettendorff exigiu
categoricamente a restituição do poder temporal sobre os índios, afirmando que
“sem a administração temporal dos índios, a Missão não pode subsistir136”. Em face deste impasse, Gomes Freire
declarou-se favorável ao restabelecimento da “dupla administração”. A junta
acatou a posição do governador e, logo em seguida, recomendou-a ao rei 137.
Com
base neste “pacote” de compromissos, foi promulgado, em 21 de dezembro de 1686,
o Regimento das Missões. Esta masterpiece of legislation (“peça-mestra
da legislação”) – na opinião de Mathias Kiemen138
– conjuga, em linguagem jurídico-técnica, os objetivos da “salvação das almas”
dos índios com o regime de confinamento e trabalho obrigatórios. Neste sentido,
a nova lei objetiva
dar fôrma
conveniente à reduçaõ do Gentio do Estado do Maranhaõ, para o gremio da Igreja,
& a repartição, & ser o vicio [a obrigação] dos Indios, que depois de
reduzidos assistem nas aldeas, querendo de tal modo satisfazer ao bem espiritual,
& temporal de huns, & outros, que inteyramente fosse satisfeyto o
serviço de Deos, para bem de suas almas, & se encaminhasse à vida de todos
com honesto trabalho della, ...139
No
documento há quatro eixos principais que permitem subsumir o conjunto de seus
vinte e quatro parágrafos. Primeiro [§§ 1-7], os aldeamentos terão uma
expressiva autonomia, garantida mediante: a restituição da “dupla
administração”, a nomeação de dois “procuradores dos índios” e a supervisão da entrada
de não-indígenas como da saída de indígenas. Além disso, sujeitar-se-á o
casamento misto a controles para evitar a eventual escravização da parceira
ameríndia. Segundo [§§ 8-9, 22], os aldeamentos serão reagrupados em lugares
estratégicos com, respectivamente, uma população mínima de 150 casais, facilitando,
assim, as repartições e agilizando o intercâmbio demográfico e econômico entre
eles. Terceiro [§§ 10-19], os serviços dentro e fora dos aldeamentos serão
flexibilizados nestes termos: haverá um inventário anual da mão-de-obra
masculina que será, em seguida, bipartida. Os índios que forem destinados a
trabalhos fora da missão terão definidos, por uma comissão mista, os tipos de
serviço, os períodos de ausência – no Maranhão até quatro e no Pará até seis
meses conforme a sazonalidade das safras – e o valor da remuneração. Quanto aos
missionários, as residências que ficarem a trinta léguas das principais
cidades, receberão vinte e cinco índios (mais tarde, casais) para seus
serviços. Quarto [§§ 20-21, 23-24], certas necessidades dos moradores
(sobretudo, a requisição de índios como remadores para transportes de porte
maior, ou de índias como amas de leite ou ajudantes na produção de farinha de mandioca)
e dos índios recém-descidos (provisoriamente instalados em aldeamentos à parte
e, por dois anos, isentos de serviços exteriores) não serão mais negadas, mas
tratadas como casos excepcionais140.
Apesar
do conteúdo pragmático e o teor conciliatório, a aplicação do Regimento revelou
ser difícil. De fato, a persistência da falta crônica de mão-de-obra, a
crescente afirmação das outras ordens (franciscanos, mercedários, carmelitas) e
a ocupação progressiva do interior, por meio de uma malha de fortes e fortins,
marcaram a conjuntura no último quartel do século XVIII141. Diante deste quadro, um alvará readmitiu,
em 1688, a organização de tropas de resgate142.
Poucos anos depois, em 1693, a rede de aldeamentos foi dividida entre todas as
ordens presentes na colônia; haja vista que a Companhia de Jesus
não tinha padres
suficientes para garantir um atendimento pastoral e administrativo adequado143. Conforme os acordos, os jesuítas se
retiraram das missões da margem esquerda do Amazonas e das mais recentes sitas
nos rios Madeira e Negro144. É
importante assinalar que, em longo prazo, a divisão favoreceu os inacianos,
pois resultou em uma concentração eficaz de suas atividades e, também, de seus
bens na “banda sul” do rio-mar, uma área já bem integrada às dinâmicas
econômicas da colônia.
Com
a crescente expansão lusa no espaço amazônico, a Missão do Maranhão entrou em
contato direto com missionários que atuavam em áreas fronteiriças controladas
ou reclamadas por outros europeus. Assim, o padre Samuel Fritz, jesuíta
originário da Boêmia e membro da Província de Quito, desceu em 1689 o rio até
Belém para cuidar de sua saúde e denunciar os abusos cometidos pelos portugueses
nas missões dos rios Solimões e Negro. A presença deste inaciano, vindo de
regiões pretendidas pela Coroa castelhana, incomodou não somente as
autoridades, mas até seus próprios irmãos de batina. Em 1691, ele se viu
forçado a voltar rio acima145. Alguns
anos mais tarde, em 1696 e 1697, tomou-se conhecimento de que as investidas
francesas a partir de Caiena em direção ao Cabo do Norte tiveram o
acompanhamento de padres jesuítas. Dentre eles estava o padre Claude de
Lamousse que serviu de capelão e intérprete146.
Nos dois casos denota-se que, ao invés de priorizarem sua pertença comum à Companhia,
os padres tenderam a frisar sua lealdade para com a respectiva coroa.
No
que tange à implantação do Regimento das Missões no interior dos
aldeamentos, evidenciou-se a necessidade de fortalecer a coesão do grupo dos
missionários e de uniformizar os métodos pastorais. Neste sentido, Bettendorff
tratou em 1690, enquanto Superior da Missão, de reafirmar a Visita de
Vieira e de introduzir um catecismo único. Esta política objetivou evitar a
dispersão do potencial jesuítico, sobretudo no contexto da chegada sucessiva de
missionários jovens e inexperientes147.
No mesmo intuito, o padre luxemburguês tinha publicado em 1687, durante sua estadia
em Lisboa, uma reedição da famosa Arte de Grammatica da Lingua Brasílica de
Luís Figueira e um catecismo bilíngüe – nheengatu-português – de sua própria
autoria, o Compendio da doutrina christam na Lingua Portugueza, &
Brasilica148. Além disso, Bettendorff
conseguiu, em 1692, a obtenção de um aumento dos subsídios reais para os
missionários conforme as disposições do padroado149.
Estas medidas significaram um fortalecimento interior da Missão, servindo de
complemento para a consolidação exterior alcançada mediante a autonomia das
missões
(1686) e a
divisão das mesmas (1693).
Apesar
da aparente vantagem para a Companhia de Jesus, o Regimento das Missões teve
um impacto sobre a sociedade colonial inteira, pois constituiu um modus
vivendi viável que contemplou os principais interesses de todas as partes
envolvidas e concernidas. Assim, os religiosos recuperaram a “dupla administração”
e voltaram fortalecidos ao Maranhão como gerenciadores de aldeamentos doravante
autônomos. Os moradores conseguiram um acesso mais amplo à mão-de-obra
indígena, pois a bipartição e os prazos prolongados de serviço lhes forneceram
mais trabalhadores por mais tempo. As autoridades metropolitanas puderam
esperar da conciliação destes dois grupos-chave uma rápida estabilização sócio-econômica
da precária e periférica colônia amazônica. Quanto aos índios aldeados – sem
participação nenhuma nas negociações –, eles obtiveram uma relativa proteção em
razão da interdição da entrada de “brancos” e mestiços nas missões e das
disposições especiais para mulheres e grupos recém-descidos150. De fato, o espaço autônomo dos aldeamentos
permitiu, em longo prazo, que se desenvolvesse uma cultura popular de matriz
indígena na qual elementos de origem xamânico-ameríndia se justapuseram e/ou sobrepuseram
aos de proveniência ibero-barroca.
O
Regimento das Missões, com seu caráter técnico e teor isolacionista no
que tange à compreensão da autonomia, tornou-se, para além de sua supressão em
1757, uma espécie de lei orgânica da sociedade colonial da Amazônia Portuguesa.
De fato, o Diretório dos Índios151
que o substituiu, constitui basicamente uma versão “laicizada” das disposições
de 1686. Por sua vez, o Regimento não teria sido possível sem as leis vieirianas
de 1655 e 1680, que buscavam, de certa forma, salvaguardar o ideal da
“liberdade dos índios”. Mesmo não tendo sido um “fiel continuador de Vieira” –
como sugere Maria Liberman152 –, a argumentação
do padre Bettendorff, proferida durante as negociações entre 1684 e 1686, não
representa uma ruptura completa com a lógica de seu predecessor. Seja como for,
o proceder pragmático do padre luxemburguês foi decisivo para dar ao Regimento
das Missões – por sinal, a última colaboração jesuítica na legislação
indigenista – um efeito relativamente durável no processo da constituição da
sociedade regional nos séculos XVII e XVIII.
Conclusão
Os
três personagens fundadores que se seguiram, quase em linha ininterrupta, entre
1622 e 1693, à frente da Missão do Maranhão, marcaram profundamente a presença
da Companhia de Jesus como também o processo de formação da sociedade colonial
nesta região “de fronteira”. Apesar de sua situação geoestratégica entre o
centro do continente sul-americano e o espaço atlântico, a colônia portuguesa
na Amazônia, fundada em 1621, viveu muito tempo em um relativo isolamento.
Economicamente pouco rentável, em razão da predominância do extrativismo
florestal e da crise econômica do século XVII, ela atraiu um número muito
reduzido de moradores europeus. Nestas circunstâncias precárias, a integração dos
numerosos povos indígenas tanto à cristandade barroca quanto a um regime servil
foi considerada como meio imprescindível para viabilizar esta colônia tardia.
Porém, os modos para alcançar estas metas tornaram-se logo um pomo de discórdia
entre moradores e missionários. Apesar das múltiplas conivências entre estes
dois agentes coloniais, suas controvérsias em torno dos índios produziram,
durante o século XVII, compromissos jurídicos frágeis que geravam um clima
social de permanente tensão.
Luís
Figueira foi o primeiro jesuíta a apontar o grande potencial da região
amazônica para o apostolado missionário, sobretudo por causa do grande
contingente de povos indígenas. O seu Memorial sobre as terras e das gentes,
escrito em 1637, o revela de forma clara e concisa. O padre tentou dar um enquadramento
concreto ao seu plano por meio da fundação oficial da Missão em 1639. Contudo,
sua morte trágica implicou uma longa interrupção das atividades inacianas.
Antônio Vieira retomou o projeto e instaurou, a partir de 1653, a tutela
exclusiva da Companhia de Jesus sobre os índios. Este monopólio permitiu uma
política expansionista. Em pouco tempo, a rede de aldeamentos se estendeu pelo
vale amazônico até mais de mil quilômetros rio acima. O Regulamento das Missões
ou Visita, escrito no fim dos anos 1650, definiu, com base na “dupla
administração”, as relações entre missionários e índios no interior dos
aldeamentos. O texto serviu fundamentalmente para garantir a coesão dos poucos
inacianos num ambiente em que a solidão e a dispersão tenderam a minar a
motivação apostólica.
A
exclusão dos colonos na redefinição das relações étnico-sociais e econômicas,
promovida por Vieira, está na origem do levante de 1661 que forçou o famoso
padre ao exílio e aboliu o monopólio da Companhia de Jesus sobre os indígenas.
Entre os missionários que conseguiram escapar da expulsão, destacou-se um jovem
luxemburguês formado em direito. João Felipe Bettendorff tornou-se o personagem
central das quatro últimas décadas do século XVII. Ele mesmo caracterizou este
período de “agonia”, fazendo, repetidamente, alusão aos graves problemas
econômicos, incertezas jurídicas e dissensões internas entre os missionários.
Um segundo levante dos colonos em 1684 – de fato, uma resposta às reformas sócio-econômicas
impostas pela metrópole –, fez relançar as negociações acerca das relações entre
os principais agentes sociais da colônia. Bettendorff influenciou, de maneira
decisiva, a formulação do Regimento das Missões, promulgado em 1686.
Esta lei constitui basicamente um compromisso, ou melhor, um modus vivendi que
parte de uma expressiva autonomia dos aldeamentos. Com efeito, uma argumentação
de cunho técnico-jurídico, adaptada a uma conjuntura modificada, substituiu o
discurso anterior – o de Vieira –, ainda caracterizado pelas idéias da
filosofia e teologia neo-escolásticas.
Ribeirinhos da
Amazônia, descendentes dos índios aldeados nas missões religiosas dos séculos
XVII e XVIII. Foto recente.
Sem
dúvida, Memorial, Visita e Regimento contribuíram,
enquanto textos programáticos, para que os aldeamentos se tornassem instrumento
eficaz de estruturação do espaço amazônico mediante uma extensa rede de núcleos
habitacionais interligadas e, também, de integração das populações ameríndias à
sociedade colonial através de um sistema de estrito controle sociocultural. Não
obstante, no interior das missões surgiu um processo peculiar de etnogênese
que, preservando a matriz indígena, agregou elementos ibero-barrocos
recém-introduzidos às tradições ameríndias herdadas. A cultura popular da Amazônia
– sobretudo o modo de viver das populações ribeirinhas ou caboclas – resulta
destas dinâmicas criativas e constitui hoje um legado vivo do projeto jesuítico
implantado no turbulento século XVII.
“LEVAR A LUZ DE NOSSA SANTA FÉ AOS SERTÕES DE MUITA GENTILIDADE”: FUNDAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA MISSÃO JESUÍTA NA AMAZÔNIA PORTUGUESA (SÉCULO XVII) – Parte 02
Karl
Heinz Arenz
Diogo
Costa Silva
2.
A expansão sob António Vieira
Como a trajetória de Figueira, também a
missão de Vieira na Amazônia conheceria um fim trágico. Embora não sofresse
naufrágio, nem uma morte violenta, este padre português sentiu, em 1661, a amargura
de uma expulsão conturbada. Quando Vieira deixou Lisboa rumo ao Maranhão, em
novembro de 1652, ele era o mais famoso dos inacianos até então enviados às
terras amazônicas. Com efeito, uma vez passada a ameaça das invasões holandesas
nas regiões costeiras da América Portuguesa, a Coroa mostrouse determinada a
completar a integração da colônia do Maranhão e Grão-Pará ao conjunto de suas possessões
atlânticas. Em vista disso, uma presença mais expressiva dos jesuítas foi
considerada como fundamental. O primeiro grupo de religiosos que aportou em São
Luís, no dia 23 de novembro de 1652, contou onze missionários, entre os quais
os padres Francisco Velloso e João de Souto Maior26.
Mas somente a partir do dia 16 de janeiro de 1653 – data da chegada do padre
Antônio Vieira –, a Missão do Maranhão começou a ser efetivamente reativada.
Conforme as competências inerentes à sua dupla titulação de superior e
visitador, Vieira veio como representante plenipotenciário do prepósito geral
da Companhia de Jesus. Além disso, o famoso padre português contou com o apreço
geral por seus méritos adquiridos no serviço do Rei-Restaurador D. João IV,
apesar de ter perdido influência na corte lisboeta27.
A vinda do padre Vieira provocou
imediatamente uma agitação entre os moradores de São Luís, pois corriam boatos
de que ele queria mudar as leis de 1647 e 1648 concernentes ao cativeiro lícito
dos índios. Uma revolta aberta eclodiu com a publicação, no dia 19 de janeiro
de 1653, de um alvará régio que declarou livres todos os índios cativos. Esta
nova lei tinha sido retida pelo capitão-mor da cidade no intuito de vincular a
chegada do novo superior à sensível questão da “liberdade dos índios”. Também
os moradores de Belém se inquietaram quando souberam da presença do famoso
inaciano na região. Para se prevenir, eles forçaram o padre João de Souto Maior
a assinar, em 26 de janeiro de 1653 um documento que visou reduzir, de antemão,
a margem de manobra do superior em matérias de lei. O referido papel impôs aos
jesuítas, como única incumbência, o ensino da doutrina e determinou o seu
afastamento da repartição anual da mão-de-obra indígena28. Vieira, mesmo tendo prometido ao rei de não
interferir em assuntos indigenistas, começou a mobilizar, diante das reações
veementes dos colonos, as autoridades do reino em favor de uma revisão do
status jurídico dos índios29. Segundo
Heinrich Böhmer, esta iniciativa desencadeou uma “guerra de trinta anos contra
os colonos30”, sendo que as contendas
mais impactantes deste conflito ocorreram em 1661, quando Vieira foi expulso31.
Ainda no ano de sua chegada, o superior
partiu para uma excursão às proximidades de Gurupá e Cametá na foz dos rios
Xingu e Tocantins. Não somente a grande quantidade de povos ameríndios, mas também
os abusos cometidos pelos capitães no interior da colônia convenceram-no a
reforçar a precária rede de aldeamentos existentes32.
Sob sua orientação, estes centros catequéticos tornar-se-iam a espinha dorsal
da Missão do Maranhão33. De fato,
Vieira projetou um controle estrito dos inacianos sobre a população ameríndia
para viabilizar uma conversão em condições viáveis e uma proteção eficaz contra
possíveis interferências de colonos e militares34.
Em vista disso, ele fundou ou refundou aldeamentos em lugares estratégicos e
populosos, sobretudo na serra de Ibiapaba e na calha amazônica35.
Nesta nova conjuntura, Vieira considerou
as competências concedidas pelo rei aos jesuítas, em 1652, insuficientes e
ineficazes para poder agir em favor dos índios. Por isso, ele dirigiu-se, ainda
em 1653, a D. João IV, propondo-lhe as seguintes medidas: afastamento dos
capitães de assuntos indigenistas, presença obrigatória de um religioso em
todas as expedições para o “sertão”, introdução do cargo do “procurador dos
índios”, inventário anual da mão-de-obra indígena, regulamento das condições e
dos prazos de trabalho e concentração dos índios em aldeamentos sob a
administração exclusiva dos padres da Companhia de Jesus. Estas propostas,
fixadas em uma carta do dia 6 de abril de 165436,
foram promulgadas, sob forma de alvará régio, um ano mais tarde, em 9 de abril
de 165537. Mediante esta lei, os aldeamentos
tornaram-se, definitivamente, a peça-mestra da política vieiriana.
2.1.
A rede dos aldeamentos
Para entender a importância dos aldeamentos
jesuíticos na América Portuguesa, é imprescindível lembrar que os primeiros
estabelecimentos foram erigidos nas imediações de Salvador da Bahia em 1552, três
anos após a vinda dos jesuítas ao Estado do Brasil38.
O padre Manuel de Nóbrega, fundador da Província do Brasil, salienta em uma
carta de 8 de maio de 1558 a necessidade de concentrar os índios em aldeias à
parte sob a direção exclusiva dos missionários com as seguintes metas:
A
lei, que lhes [índios] hão-de dar, é defender-lhes comer carne humana e
guerrear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se
pois têm muito algodão, ao menos despois [sic] de cristãos, tirar-lhes
os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los
viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para antre [sic]
cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes Padres da
Companhia para os doutrinarem39.
Estas aldeias, afastadas dos núcleos
habitacionais dos colonos e autônomas em relação às autoridades, constituíram,
pois, um ambiente propício para a sedentarização e a doutrinação, permitindo interferências
diretas nos hábitos culturais dos indígenas. Nóbrega, escandalizado com a
suposta “inconstância” dos índios convertidos, viu os aldemantos como “forjas
da fé”, como ele mesmo elucida em seu Diálogo sobre a conversão do gentio de
1556, um documento-chave que reflete a concepção antropológica dos jesuítas nos
séculos XVI e XVII40. Contudo, as
missões do Estado do Brasil começaram a declinar a partir dos anos 1580,
sobretudo em razão da resistência dos colonos e das querelas entre os próprios
jesuítas. Nem sequer um compromisso, promulgado em 1596, conseguiu deter este
processo41.
Diferente do Estado do Brasil, a extensa
rede de aldemantos no Estado do Maranhão e Grão-Pará contribuiu
significativamente a consolidar a nova colônia42.
As primeiras missões na Amazônia remontam à presença efêmera de capuchinhos
franceses na ilha do Maranhão entre 1612 e 161543. Uma década mais tarde, o
capitão Simão Estácio da Silveira relata que aldeias indígenas, submissas no
decorrer das primeiras expedições portuguesas pelos rios da região, foram
confiadas a militares de mérito que tiveram a obrigação de cuidar da instalação
e manutenção de missionários franciscanos nestes lugares. Os filhos espirituais
de São Francisco – sob a direção do frei Cristóvão de Lisboa – estão, assim, no
início dos primeiros aldeamentos no interior da Amazônia Portuguesa44. Da Silveira descreve, em 1624, os índios
recém-aproximados como dóceis, vivendo em “aldeas de Gentio circunvezinhas, que
fortalecem, acompanhão, & servem aos Portugueses de pescadores, caçadores,
& de outros mesteres, & todas tem suas Igrejas muito fermosas, &
dezejão muito ser Christãos, & agora vão frades capuchos [franciscanos]
para os cathequizar, allem de que ja lá estão padres da Companhia [jesuítas]45”. Mas as freqüentes repartições da
mão-de-obra indígena entre militares e religiosos e, sobretudo, o comportamento
violento dos soldados fizeram – segundo da Silveira – que grupos inteiros de
índios “fugirão dos nossos tratos, elles sabem o porque46”. Três décadas mais tarde, o padre Vieira
denunciaria esta conivência inicial entre missionários e militares.
Uma das primeiras referências a
aldeamentos administrados por padres da Companhia de Jesus na Amazônia
encontra-se na correspondência do capitão-mor Alexandre de Moura, responsável
pela investida portuguesa contra os franceses de São Luís em 1615. Este faz uma
alusão aos métodos empregados pelos já mencionados jesuítas Manoel Gomes e
Diogo Nunes que integraram sua campanha:
E,
em todo o tempo que lá estive, se ocuparam os ditos Padres em dar notícia de
nossa santa fé ao gentio, doutrinando-o, pregando e confessando, levando cruzes
e Igrejas pelos povos [aldeias] dos Índios; cantando-lhes missas, ...
Exercitavam-se mais nas obras de misericórdia, curando os doentes com muita
caridade e enterrando os mortos, não perdoando aos trabalhos nem de dia nem de
noite, havendo muitas e perigosas doenças no gentio47.
Tudo indica que os dois inacianos já
conheciam o sistema dos aldeamentos, pois a concentração da população indígena
em volta de uma praça, com um cruzeiro levantado em seu centro – marco de ordenamento
e controle do espaço –, como também as práticas da doutrinação e “misericórdia”
são as expressões mais evidentes de que eles aplicaram um método já usual de
evangelização.
Missão
de Nossa Senhora da Candelária no norte da atual Argentina. A planta das
missões da Amazônia Portuguesa não foi muito diferente. Destacam-se a praça
central e as casas enfileiradas em ordem retilínea. Ao lado da igreja
encontram-se as oficinas, a escola, a residência dos padres e o abrigo das
viúvas. Planta do século XVIII.
A maior expansão dos aldeamentos sob os
cuidados dos jesuítas aconteceu no superiorato de Vieira que, segundo Dauril
Alden, fundou, entre 1653 e 1661, aproximadamente cinqüenta missões48. Contudo, esta rápida difusão da rede
missioneira não objetivou evitar a servidão dos índios em si; ao contrário, as
aldeias constituíram, antes de tudo, um modo para regrá-la. O padre Vieira
declara em 1662:
Não
é minha intenção que não haja escravos; antes procurei nesta corte, como é
notório e se pode ver da minha proposta, que se fizesse, como se fez, uma junta
dos maiores letrados sobre este ponto, e se declarassem como se declararam por
lei (que lá está registrada) [lei de 09/04/1655] as causas do cativeiro lícito.
Mas porque nós queremos só os lícitos, e defendemos os ilícitos, por isso nos
não querem naquela terra, e nos lançam fora dela49.
Portanto, o projeto jesuítico não foi,
como sugere Darcy Ribeiro, uma “alternativa étnica”, capaz de engendrar um
outro tipo de sociedade, paralela àquela criada por colonos e autoridades50. Os inacianos atuaram, antes de mais nada,
dentro do quadro de privilégios que lhes concedeu o regime do padroado. Também
a reformulação da legislação indígena por Vieira só foi possível por causa da
margem de ação que este regime permitiu.
Portanto, um debate sobre a “liberdade
dos índios” – no sentido moderno de uma emancipação ou promoção humana – era
inexistente entre os próprios missionários. Além do mais, estes viviam muito dispersos
e, muitas vezes, solitários, incapazes de administrar adequadamente as
numerosas missões. No início dos anos 1670, o padre Pedro Luís Consalvi cuidou
sozinho de toda a área do Baixo-Amazonas e do vale do Xingu que contou com dois
grandes aldeamentos e inúmeros pequenos. A presença esporádica do padre nas
missões só fez aumentar as fugas dos índios51.
Na mesma época, foram confiados ao padre
Gaspar
Misch “toda a nação dos Nheengaíbas e todo o rio das Amazonas”, sendo que
“sozinho faz o que caberia a oito ou dez missionários eficientes realizar52.”
Por causa desta precariedade e dispersão
das missões, Vieira escreveu dois regulamentos internos buscando adaptar o
sistema dos aldeamentos aos desafios da realidade amazônica. Trata-se do Modo
como se há de governar o gentio que há nas Aldeias do Maranhão e Pará – ou
simplesmente Modo53 – e o Regulamento
das Aldeias, mais conhecido como Visita54.
O primeiro texto, sem data, constitui um complemento à lei de 9 de abril de
1655 que cedeu aos jesuítas a “dupla administração” (espiritual e temporal) dos
aldeamentos55. Vinte cinco anos mais
tarde, Vieira recomendou de novo o Modo, no contexto das negociações
acerca da lei “da liberdade do gentio” de 1º de abril de 168056. O documento resume, de maneira concisa, o
pensamento do autor, consistindo em uma apologia da tutela inaciana sobre os
índios. O texto trata, primeiramente, da administração temporal dos
aldeamentos, atribuindo uma co-responsabilidade aos chefes indígenas e, também,
às autoridades coloniais concernidas: governador, capitães e câmaras; em
seguida, fala da administração espiritual, salientando o monopólio dos padres jesuítas
em questão de sacramentos e doutrina; mais adiante, refere-se às incursões,
insistindo em uma análise criteriosa e crítica dos motivos; finalmente, o
documento apresenta as disposições para a repartição da mão-de-obra, exigindo
um respeito mínimo ante as necessidades humanas e as obrigações cristãs dos catecúmenos
e neófitos indígenas.
O segundo texto, a já citada Visita,
foi escrito – como a designação já o indica – após uma visitação completa da
Missão realizada por Vieira no final dos anos 1650. Os cinqüenta parágrafos
deste regulamento formam um conjunto de recomendações que se referem tanto a
assuntos internos dos missionários quanto a questões externas que dizem
respeito ao trato com os índios aldeados. O documento está subdividido em três
partes. Os parágrafos de 1 a 13 insistem, sobretudo, na fiel observância
religiosa por parte dos jesuítas, frisando, com base na tradição do fundador
Inácio de Loyola, a execução diária da leitura espiritual, da oração pessoal e
do exame de consciência, como também a realização dos retiros mensal e anual.
De maneira implícita, estas prescrições iniciais da Visita levam em
conta os inconvenientes dos constantes deslocamentos, como também a solidão
experimentada pelos religiosos durante suas viagens às longínquas e dispersas
“aldeias de visita” onde não havia uma equipe de missionários residentes. Por
isso, o primeiro parágrafo ressalta a inextricabilidade entre os “exercícios
espirituais” – método de meditação herdada do fundador para fortalecer a opção
pessoal pelo serviço apostólico – e as práticas pastorais rotineiras:
Como
os exercícios espirituais [meditações] são os que hão de dar eficácia aos
exteriores [atividades pastorais], a primeira aplicação dos Religiosos da
Companhia desta Missão, e sôbre que deve vigiar o cuidado dos Superiores, é que
de tal maneira nos ocupemos nas coisas exteriores do serviço dos próximos, que,
ajudando e ganhando as almas alheias, não padeçam detrimento as próprias57.
Os parágrafos de 14 a 37 dizem respeito
à administração espiritual, pois regulam meticulosamente os horários da
catequese e a rotina diária com base nas rubricas litúrgicas (sacramentos,
domingos, festas) e tradições devocionais (confrarias, procissões, ladainhas,
cantos), além de incumbir os missionários de registrar minuciosamente batismos
e casamentos e divulgar o uso da “língua geral”. Já os parágrafos de 38 a 50
tratam da administração temporal, dando orientações para: o exercício da
justiça comum em caso de pequenos delitos, a implicação dos chefes indígenas na
gerência dos aldeamentos, o relacionamento com as autoridades coloniais e,
sobretudo, a repartição e os trabalhos dos índios dentro e fora das missões.
A Visita denota claramente o
duplo objetivo de Vieira: impressionar os indígenas por meio de um comportamento
paternal – algo que se manifesta na permissão benevolente do baile aos sábados
e na dedicação especial às crianças (aulas) e aos enfermos e moribundos
(visitas)58 – e fortalecer a coesão
entre os missionários dispersos pelo “sertão”. Por isso, o documento vieiriano
foi três vezes (1668, 1680 e 1690) expressamente confirmado como regulamento
obrigatório dos jesuítas na Amazônia59.
De modo geral, pode-se afirmar que, no plano interno, a Missão do Maranhão se
consolidou, no decorrer do século XVII, devido a esta constante readaptação da Visita
de Vieira à realidade dos missionários e às práticas da missionação.
Além do regulamento interno, também o
local escolhido e a função atribuída às missões deram endosso à sua rápida
expansão. Ao fundar um aldeamento, os jesuítas optaram geralmente por um lugar estratégico
na região da várzea, às margens de um rio navegável e próximo à floresta,
condições ideais para a coleta de drogas do sertão, a produção agrícola
extensiva e a troca dos produtos. No século XVII, a várzea – a faixa de terras
férteis inundada anualmente em razão da enchente dos rios da bacia amazônica – constituiu
ainda o habitat tradicional da grande maioria dos povos ameríndios60. Portanto, a concentração posterior desta população
em aldeamentos situados neste mesmo ambiente, não requeria maiores adaptações.
Tal fato explica porque os missionários conseguiram, com o saber-fazer de seus
catecúmenos e neófitos, integrar as missões, dentro de um prazo relativamente
curto, tanto nas dinâmicas do incipiente comércio intra-colonial (fornecendo
produtos como farinha de mandioca, manteiga à base de ovos de tartaruga e peixe
seco) como na rede de trocas atlântica (exportando diversas drogas do sertão,
sobretudo cacau, cravo e açúcar)61.
Constituíram-se, assim, conforme sua
função específica, quatro tipos de missões: primeiro, as fazendas destinadas à
manutenção dos colégios; segundo, os aldeamentos de serviço real (sobretudo, as
salinas na zona litorânea); terceiro, os aldeamentos “de repartição” cuja
população masculina foi anualmente inventariada e repartida entre colonos,
missionários e as próprias missões; quarto, os aldeamentos “de doutrina” tendo
como objetivo exclusivo a catequização (geralmente de uma população recém-contatada)62. As fazendas, dotadas de um contingente de
mão-de-obra não sujeita à repartição, foram de suma importância, não somente
para as casas urbanas, mas também para a produção e o fornecimento de víveres e
utensílios para as expedições missionárias e as residências religiosas no vasto
interior. A maior parte delas se encontrou, evidentemente, nas proximidades de
Belém e São Luís. Algumas se destacaram por terem engenhos de açúcar ou
oficinas especializadas, sobretudo olarias para a produção de telhas, potes e
vasilhas, como também marcenarias para a confecção de móveis e canoas63.
Quanto ao desenvolvimento demográfico
dos ameríndios aldeados na Amazônia seiscentista, é impossível fornecer números
exatos. A carta ânua de 1696 menciona onze mil índios cristianizados e administrados
por trinta missionários64. Roberto
Simonsen fala de cinqüenta mil indígenas vivendo em oitenta aldeamentos por
volta de 168665. Darcy Ribeiro
estipula que aproximadamente duzentos mil índios teriam sido “descidos” e um
milhão – de um total de dois milhões – teriam morrido, somente no século XVII,
em conseqüência de assaltos, deportações, trabalhos forçados, fomes e,
sobretudo, epidemias66.
2.2.
A tutela sobre os índios
Foi Vieira quem suscitou o debate acerca
da “liberdade dos índios” na Amazônia Portuguesa. O padre amparou-se
principalmente em textos jurídicos promulgados anteriormente para o Estado do
Brasil. Tratou-se, primeiramente, da lei de 26 de julho de 1596, concernente à
tutela dos jesuítas sobre os índios “descidos”; em seguida, da lei de 30 de
julho de 1609, referente à liberdade dos índios interdizendo toda forma de
sujeição; e, finalmente, da provisão de 10 de setembro de 1611, sobre as
condições de cativeiro legal67. Além
disso, Vieira recorreu a argumentos tirados dos escritos bíblicos e da tradição
teológica como mostram os seus sermões proferidos em São Luís, sobretudo o Sermão
da Primeira Dominga ou das Tentações, de 2 de março de 1653, e o Sermão
de Santo Antônio ou dos Peixes, de 13 de junho de 165468. No entanto, o alvo imediato das primeiras
críticas do jesuíta português na Amazônia foi uma legislação ainda recente de
profundo caráter ambíguo. De fato, uma lei de 10 de novembro de 1647 e uma
provisão de 9 de setembro de 1648, apesar de afirmarem a liberdade dos
ameríndios, permitiram uma escravização camuflada mediante o recrutamento
forçado de trabalhadores indígenas para serviços considerados imprescindíveis69.
Quando, finalmente, uma provisão régia
de 17 de outubro de 1653 facilitou as “guerras justas” e, por conseguinte, os
cativeiros legítimos por razões outras do que um ataque direto dos índios,
Vieira protestou energicamente. De fato, a nova disposição legalizou ações
punitivas contra os índios em caso de impedimento da pregação do evangelho,
aliança com inimigos da Coroa, perturbação do comércio e da agricultura dos
colonos, consumo de carne de súditos do rei, negação de tributos e
desobediência à convocação para trabalhos públicos ou expedições militares70. Mas, a indignação de Vieira inflamou-se, sobretudo,
contra duas cláusulas: uma que confiou a administração dos aldeamentos aos
caciques e outra que favoreceu os colonos na repartição da mão-de-obra indígena71. A reação veemente e intransigente do famoso
padre português diante destes agravos contra os índios – Maria Beatriz Nizza da
Silva evoca uma “incapacidade de compromisso político72” – produziu uma escalada irreversível das
tensões que atingiram seu auge com a primeira expulsão dos jesuítas em 1661.
Antes de aprofundar o engajamento de
Vieira em favor de uma legislação que visou garantir aos índios uma liberdade
sob a tutela exclusiva dos inacianos, é imprescindível assinalar três fatos.
Primeiro, a colonização lusa na Amazônia aconteceu numa época em que as grandes
discussões teológico-jurídicas sobre a “liberdade dos índios” já estavam
encerradas. De fato, dominicanos, como os freis Antonio de Montesinos
(1475-1540), Francisco de Vitória (1483-1512), Bartolomé de Las Casas
(1484-1566) e Domingo de Soto (1494-1570), e jesuítas, como os padres Luis de
Molina (1535-1600) e Francisco de Suárez (1548- 1617), tinham contribuído a
formular, na Espanha quinhentista, um certo consenso teórico. Os clérigos mencionados
eram ligados à chamada “escola da paz” da Universidade de Salamanca, uma
corrente teológico-humanista baseada na filosofia jusnaturalista e muito
crítica frente às práticas da colonização ibérica nas Américas73. Segundo, a servidão dos índios foi
geralmente aceita como uma medida – mesmo uma necessidade – de integração dos
mesmos à sociedade colonial. Até os teólogos e juristas de renome da época
estavam favoráveis a este princípio. Terceiro, o conceito de liberdade
individual e civil no sentido moderno era desconhecido. Ao invés disso, uma
interpretação neo-escolástica do pensamento de Tomás de Aquino (1225-1274)
constituiu a principal referência para os teólogos do seiscentos. O Aquinata defendera,
com base na concepção antropológica de Aristóteles, a idéia da desigualdade
natural dos homens, mas sem deduzir logo a existência de uma escravidão natural74. De fato, o princípio “desigual, mas não
escravo” representou o recurso mais importante para amparar a argumentação do
partido “próindígena” do século XVI. Mas, na medida em que a restrição contida
nesta fórmula apresentou um avanço para a reinterpretação do pensamento
escolástico, ela significou também uma complicação.
Exceto o jesuíta espanhol Luís de
Molina, professor na Universidade de Évora, reflexões de ordem filosófico-teológica
sobre a escravidão dos indígenas eram praticamente inexistentes em Portugal nos
séculos XVI e XVII75. Mesmo Vieira
revela na sua defesa da “liberdade dos índios”, antes de tudo, seu talento
retórico, sem apresentar um pensamento original76.
Na época, os jesuítas consideraram comumente os ameríndios como “almas
racionais, mas transviadas, postas em corpos livres, mas carentes de resguardo
e vigilância77”. Por isso, os
religiosos consentiram em impor-lhes um regime de trabalho como medida
pedagógica e obrigação para com a cristandade na qual acabaram de entrar. Ao
adaptar o ideário aristotélico-tomista à realidade dos índios, buscou-se,
sobretudo, um regulamento prático para a servidão dentro do quadro de uma
liberdade vigiada ou protective liberty – nas palavras de Dauril Alden78.
Este raciocínio se encontra, em
linguagem técnica, na obra De Indiarum Iure ou Politica Indiana da
autoria do jurisconsulto espanhol Juan de Solórzano Pereyra (1575-1653),
publicada em 164779. No entanto,
consciente da dizimação dramática da população indígena na América do Sul, este
ex-funcionário régio no Peru inverteu a argumentação, insistindo, de um lado,
no princípio da soberania natural dos índios, e, no outro, na obrigação dos
soberanos cristãos de proteger os indígenas e seus bens. A sua obra, um extenso
comentário da legislação indigenista castelhana, tornou-se, na segunda metade
do século XVII, uma referência no que tange aos direitos dos ameríndios na
América Ibérica. Assim, as propostas que Vieira apresentou ao rei durante sua
estadia na metrópole, em 1654 e 1655, contiveram duas das principais idéias de
Solórzano: o regulamento minucioso das condições de trabalho e a primazia
absoluta da Coroa em assuntos indigenistas. Destarte, o padre buscou restringir
as competências das instâncias intermediárias, sobretudo das autoridades
coloniais80. A estima de Vieira pela
obra de Solórzano foi tanta que, ainda em 1680, ele prometeu enviar um exemplar
aos confrades da Missão para fins de consulta em caso de litígio 81.
Antônio
Vieira em postura de pregador aos índios e protetor dos negros em plena selva
amazônica. Pintura do século XVIII.
Apesar de os reis lusitanos terem
promulgado, desde os anos 1550, uma série de leis e alvarás referentes aos
índios sob pretextos religiosos e políticos, os objetivos maiores revelaram ser
de ordem econômica. As autoridades reinóis e coloniais aspiraram a tirar
proveito da concentração compacta e produtiva da mão-de-obra indígena
semi-livre das aldeias catequéticas. Por conseguinte, os textos jurídicos da
época tiveram um caráter pára-legal, pois tenderam justificar, por meio de
inúmeras disposições casuísticas e casos excepcionais, exatamente o contrário
daquilo que pretendiam afirmar82. O
objetivo principal da farta legislação indigenista dos séculos XVII e XVII não
foi – como frisado acima – a liberdade dos índios, mas antes uma servidão
regulamentada83. Apesar de moradores
e missionários não discordarem neste ponto, as diversas leis nunca apresentaram
uma solução consensual que satisfizesse ambas as partes.
Conforme este paradoxo, Vieira
convenceu, durante sua estadia em Lisboa, em 1654 e 1655, a Mesa da Consciência
– comissão deliberativa para assuntos jurídico-teológicos – a formular uma
revisão das disposições anteriores. A nova lei, promulgada em 9 de abril de 1655,
transferiu aos jesuítas a administração sobre todos os índios – aldeados,
capturados ou moradores “do sertão” – além de conferir-lhes a supervisão das
expedições militares e a realização dos “exames de cativeiro”84. Vieira conseguiu também que André Vidal de
Negreiros, homem conhecido como pró-jesuítico, fosse nomeado governador85. Tendo sido excluídas das negociações, as
câmaras municipais de São Luís e Belém – como também as outras ordens
religiosas – começaram logo a acertar medidas contra as novas disposições e os privilégios
dos inacianos. De fato, pouco depois, surgiu mais um entrave com uma ordem
administrativa, promulgada em 14 de abril de 1655, que facilitou novamente
guerras defensivas, alargando as competências do governador86. Apesar das polêmicas, a lei de 1655 foi,
indubitavelmente, o instrumento principal da política monopolista e
expansionista de Vieira, sendo que o estrito controle sobre a rede de aldeamentos
constitui o seu cerne. Ainda um ano após a promulgação da lei, o superior defendeu
com muita veemência o monopólio jesuítico:
A
cultura [cultivo] de toda esta grande messe nos está encarregada por S.
Majestade não sem grande sentimento e emulação de outras Religiões [ordens]; e
nós a procuramos, e aceitamos toda, ... Na conformidade desta resolução, estamos
hoje de posse de todas as Aldeias de Indios já cristãos ou confederados com os
Portugueses. ... Estão estas Aldeas em distância de quatrocentos léguas por
costa, em 8 Capitanias diferentes, e posto que as distâncias sejam tão grandes
e nós tão poucos, foi força dividirmo-nos logo a tomar posse de tudo, porque
havia Religiões que se queriam intrometer a entrar em algumas das ditas
Aldeias, ...87
Além de consolidar a instituição das
missões, Vieira conseguiu aumentar o efetivo dos missionários – entre os quais
muitos coadjutores temporais (religiosos não clérigos) – e pôs-se a planejar a
implantação das etapas-chave do sistema educativo jesuítico, sobretudo, as
humanidades e o noviciado88. Para supervisionar
a aplicação da nova lei, o superior visitou, entre 1656 e 1660, todos os
aldeamentos de uma ponta da Missão à outra, isto é, da serra de Ibiapaba perto
do Cerará até a ilha dos Tupinambaranas na foz do rio Madeira89. Mas, a morte do rei D. João IV, em 8 de
novembro de 1656, privou Vieira repentinamente do apoio de seu principal
protetor. Temendo a reação das câmaras municipais que, aproveitando o desaparecimento
do monarca pró-jesuítico, começaram a interferir na metrópole, o superior
implorou a regente D. Luísa de Gusmão, viúva do rei, para confirmar a lei de
1655 e os privilégios da Companhia de Jesus90.
Uma provisão régia de 1658 deferiu sua solicitação91.
Finalmente, em meados de 1661 irrompeu
uma insurreição dos colonos. Estes alegaram sentirem-se cada vez mais prejudicados
por causa do acesso restrito à mão-de-obra nativa em razão do controle inaciano.
Vieira e a maioria de seus confrades foram presos e expulsos. O novo rei D.
Afonso VI – que acedera ao poder em junho de 166292
– reagiu aos acontecimentos somente em setembro de 1663, quando assinou
duas provisões93. Estas traziam, de
um lado, certo alívio, pois esclareceram a situação confusa; de outro lado,
elas enfraqueceram sensivelmente a posição dos jesuítas. Embora a Companhia de
Jesus fosse restituída no Estado do Maranhão e Grão-Pará, ela se viu obrigada a
passar a administração temporal dos aldeamentos aos chefes indígenas. Além do
mais, o povo foi agraciado com o perdão real, exceto os principais líderes da
revolta, e o padre Vieira foi expressamente proibido de regressar. Lê-se no
decreto:
Hey
por bem declarar que assim os ditos Religiosos da Companhia como os de outra
qualquer Religião não tenhão juridição [sic] algua temporal sobre o
governo dos Indios e que o espiritual a tenhão também os mais Religiosos que assistem
e rezidem naquelle Estado por ser justo que todos sejão obreiros da vinha do
Senhor... ..., hey outro sim por bem que se guarde a ultima Ley do Anno de
[1]655 e o regimento dos Governadores, e que os ditos religiosos da Campanhia
possão continuar naquella missão na forma que fica referido, excepto o P.e
Antonio Vieira por não convir a meu serviço que torne aquelle Estado94.
Mesmo exilado na metrópole, Vieira
continuou a acompanhar com interesse a sorte da Missão do Maranhão95. Quanto à sua presença na Amazônia entre 1653
e 1661, ela teve um impacto fundamental para o desenvolvimento posterior tanto
da Missão como do Estado pelas seguintes razões: primeiro, a obtenção de uma
legislação que conseguiu preservar a idéia da liberdade, mesmo condicionada
pela tutela e o confinamento obrigatório; segundo, a implantação de uma rede
estratégica de mais de cinqüenta aldeamentos, concentrando-a no vale amazônico
enquanto novo foco sócio-econômico; terceiro, a redação da supracitada Visita
como regulamento pragmático interno que reconciliou a disciplina religiosa
dos missionários com a administração dos índios aldeados. Quanto às querelas
acerca da “liberdade dos índios” provocadas por Vieira, elas impregnaram, por
muito tempo, a consciência coletiva de seus irmãos de batina da convicção de
que eles constituiriam os tutores legítimos dos ameríndios no Maranhão e
Grão-Pará.
Assinar:
Postagens (Atom)